Sebastião de Magalhães Lima

O Congresso de Roma


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astião de Magalhães Lima

      O CONGRESSO DE ROMA

      O Congresso de Roma

      Pelo mandato com que me distinguiram no congresso de Roma

Magalhães Lima

(Conferencia realisada pelo delegado portuguez ao congresso do livre-pensamento)

      Meus Senhores:

      Com o mesmo direito com que os catholicos realisam a sua propaganda e as suas peregrinações a Roma, emprehendemos nós, livres-pensadores, a nossa cruzada, não para saudar os velhos cardeaes do Vaticano, verdadeiros cadaveres ambulantes, uma especie de mumias petreficadas, symbolisando a Morte, mas para celebrar a Vida, a Natureza, o Cosmos, em todo o seu esplendor, em toda a sua grandeza, em toda a sua magestade, na pessoa dos sabios, dos philosophos, dos poetas, dos artistas, dos escriptores, dos homens de lettras o dos jornalistas, seus legitimos e authenticos representantes. Com effeito, o poder espiritual do papa é o poder da mentira, do erro, do prejuizo grosseiro, o poder do embuste, o poder da treva, da hypocrisia, do fanatismo e da superstição. O seu poder temporal representaria uma usurpação criminosa, condemnada pelo proprio Christo que mandava dar a Deus o que é de Deus e a Cezar o que é de Cezar. Para nós, livres-pensadores, para o mundo moderno, ha um unico poder espiritual – a sciencia, e um unico poder temporal – o trabalho.

      Sim, meus senhores, fômos a Roma, não para provocar o escandalo, o que seria improprio de homens que possuem uma educação philosophica desenvolvida, mas para dar aos jesuitas, aos papistas, aos ultramontanos e aos reaccionarios, de todas as côres e matizes, o exemplo da nossa cordura, da nossa serenidade, da nossa reflexão e da nossa tolerancia. Fômos a Roma para proclamar com Haeckel, o celebre anti-papa, como lhe chamavam alguns, a consolidação definitiva d’um poder laico, fundado sobre a justiça. Fômos a Roma, para combater essa terrivel e poderosa hierarchia que se chama o Papismo ou o Ultramontanismo, e que se manifesta sob diversos aspectos, todos contrarios á natureza, á razão e á moral: o celibato clerical; a confissão auricular; as indulgencias que transformam o catholicismo em mercantilismo de judeus repugnantes, e a fé no milagre que gera o fanatismo e a superstição. Fômos a Roma para affirmar com Berthelot, outro notavel anti-papa, que toda a educação, para ser solida e efficaz, deve libertar-se da influencia religiosa, que, á semelhança de uma immensa teia de aranha, tudo envolve e açambarca. Fômos a Roma para demonstrar solemnemente que a religião não é a padrice, como dizia Ramalho Ortigão, nem a loucura, a idiotia, a que Oliveira Martins chamou allucinação bifronte, nem o delirio chronico, na opinião de um psichiatra francez eminente, porque, n’esse caso, teriamos tambem que admittir o alcoolismo como um dos aspectos da religião. Fômos a Roma, para dizer bem alto, com o professor Sergi, que todas as religiões, pela sua immobilidade, são imcompativeis com o progresso mental e moral das sociedades modernas. A religião, pela sua natureza e pelo seu valor, póde e deve considerar-se como um phenomeno pre-historico. É o producto d’uma epocha barbara, originada na ignorancia e no medo do inferno. A substancia de toda a religião é o fetichismo. E o catholicismo baseia-se, precisamente, sobre o fetichismo e o terror das penas eternas, uma especie de inquisição, em que o Papa, Torquemada das consciencias, pretende impôr-se em nome de um Deus cruel, vingativo e odiento.

      Sob este ponto de vista pois, devemos dizer, e foi esta a primeira conclusão do Congresso – que o livre pensamento é, essencialmente e fundamentalmente, anti-religioso.

      E era de vêr aquelle grandioso espectaculo de 4:000 congressistas, representando oitenta mil adhesões moraes, transformando a aula magna do collegio romano n’um parlamento mondial, como deverá ser o parlamento da Cidade futura, e marchando altivamente, em solemne cortejo, com as suas bandeiras e os seus estandartes desfraldados ao vento, para a Porta Pia, afim de celebrar a queda do poder temporal do papa, ou prestando homenagem á memoria de Giordano Bruno, hoje mais viva do que nunca, (como vivas estão as memorias de Gallileu, de Jean Jacques Rousseau, de Voltaire, de Copernico, de João Huss, de Jeronymo de Praga, de Etienne Dolet, do nosso Antonio José, O Judeu,) ou descobrindo-se respeitosamente diante da estatua de Garibaldi, que, tendo contribuído, mais do que nenhum outro, para a queda do poder temporal do papa e para a unidade italiana, deixou aos vindouros o encargo de completar a sua obra, com o anniquilamento do poder theocratico, que, mau grado nosso, ainda impera na cidade eterna.

      E uma vez que falei em Roma, permitta-me a assembleia que dirija uma calorosa saudação á Italia, o glorioso paiz que, em 30 annos, operou a mais notavel evolução dos tempos modernos.

      A tradição carbonaria ainda se mantem ali, viva e intensa. Mazzini foi a cabeça, a alma da revolução; Garibaldi, o braço forte, o gladio flammejante, posto ao serviço dos mais generosos ideaes. Onde quer que a liberdade periclitasse, ali estava o heroico e esforçado combatente com a sua espada, não a espada do militar mas a espada do cidadão, e a sua camisola encarnada que só por si era o symbolo de uma legião.

      Cavalloti, Imbriani, o irridentista, o proprio Zanardelli, foram os continuadores d’essa mesma tradição que, transformada n’uma evolução de progresso, é hoje galhardamente sustentada pelos socialistas, á frente dos quaes se encontram homens da estatura de Lombroso, Enrico Ferri, Turati, Labriola, Colajanni, etc. Ainda ha pouco tempo, n’um discurso proferido no Gremio Luzitano, tive occasião de dizer que os progressos d’aquelle paiz me assombraram grandemente. A Italia atravessou uma crise financeira tão aguda como a nossa. A primeira vez que a visitei, a sua situação era angustiosissima. Ainda conservo d’esse tempo uma nota em papel do valor de 50 réis. Mas um paiz não morre quando tem homens da superior envergadura de muitos italianos, e que infelizmente nos faltam a nós. Não ha pequenos paizes; o que ha é pequenos homens, disse-o Victor Hugo. Hoje o credito de Italia está á altura do da França, e o desenvolvimento da sua riqueza publica é enorme. Quer sob o ponto de vista material, quer sob o ponto de vista moral a sua situação é invejavel, e, sem exagêro, se póde dizer, que, pelos seus progressos scientificos, sobretudo, da anthropologia criminal, a Italia dirige espiritualmente o socialismo no mundo. Continúa a ser a patria do direito, e a noção do direito não é outra cousa senão a evolução da justiça.

      A sua organisação revolucionaria não desmente as suas tradições. Na occasião em que se realisou o congresso de Roma, deu-se na Sardenha um motim popular que impressionou profundamente todos os espiritos liberaes e avançados. O sargento que commandava a força mandou fazer fogo sobre a multidão amotinada, e, d’essa ordem estupida e brutal, resultou ficarem feridos muitos populares e mortos alguns. Immediatamente se reuniu o comité revolucionario e resolveu desaffrontar-se do monstruoso delicto proclamando a gréve geral em toda a Italia, o que realisou, com espanto de todos, no curto praso de 48 horas. Por aqui se póde ajuizar da sua iniciativa, da sua força e da sua decisão! Este facto privou o congresso da palavra auctorisada dos deputados socialistas italianos e levou o sr. Giolliti, actual presidente do conselho de ministros, a lançar-se impudentemente nos braços da reacção. Por essa occasião, sem ser propheta, eu vaticinára o acontecimento, que, alias, foi uma consequencia logica dos factos.

      O congresso de Roma foi, principalmente, uma imponente manifestação internacional. A data e o local escolhidos, o crescido numero de congressistas, a cathegoria das pessoas, que ali se reuniram, congregadas por um mesmo ideal e por uma mesma aspiração de liberdade, tudo isso fez com que a magna assembleia tivesse uma altissima e innegavel significação politica. O papa, como desforço, mandou encerrar o museu do Vaticano e ordenou, aos seus bispos, que, depois de concluido o congresso, fizessem preces ao Deus todo poderoso, por estar livre d’aquella praga damninha de livres pensadores, que, a seus olhos, tomavam as proporções de uma calamidade publica, como a fome, a peste, a guerra, ou qualquer epidemia (sic).

      As censuras e os vituperios do Vaticano não lograram impedir a reunião. A representação italiana elevou-se a mil e oitocentos congressistas, com a adhesão de centenas de municipalidades.

      Este facto atemorisou o governo, e o ministro de instrucção que havia promettido assistir á sessão inaugural, escusou-se á ultima hora. O proprio batalhão escolar do Collegio Romano, com a sua banda á frente, ao qual havia sido concedida licença para tomar parte no cortejo civico, que se dirigiu á Porta Pia, retrocedeu a meio caminho.

      D’onde proveiu a hesitação do governo? Evidentemente, das reclamações do Vaticano que se reputava seriamente offendido com a tolerancia havida pelo ministerio para com os livres pensadores. Merry del Val, ao contrario do cardeal Rampolla, faz o jogo da triplice