amilo Pessanha
CLEPSYDRA
INSCRIPÇÃO
Eu vi a luz em um paiz perdido.
A minha alma é languida e inerme.
Oh! Quem podesse deslisar sem ruido!
No chão sumir-se, como faz um verme…
SONÊTOS
Tatuagens complicadas do meu peito:
– Trophéos, emblemas, dois leões aládos…
Mais, entre corações engrinaldados,
Um enorme, soberbo, amor-perfeito…
E o meu brazão… Tem de oiro n’um quartel
Vermelho, um lys; tem no outro uma donzella,
Em campo azul, de prata o corpo, aquella
Que é no meu braço como que um broquel.
Timbre: rompante, a megalomania…
Divisa: um ai, – que insiste noite e dia
Lembrando ruinas, sepulturas rasas…
Entre castelos serpes batalhantes,
E aguias de negro, desfraldando as azas,
Que realça de oiro um colar de besantes!
ESTATUA
Cancei-me de tentar o teu segrêdo:
No teu olhar sem côr, – frio escalpello, —
O meu olhar quebrei, a debate-lo,
Como a onda na crista d’um rochêdo.
Segrêdo d’essa alma e meu degrêdo
E minha obcessão! Para bebe-lo
Fui teu labio oscular, n’um pesadêlo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu osculo ardente, allucinado,
Esfriou sobre o marmore correcto
D’esse entreaberto labio gelado…
D’esse labio de marmore, discreto,
Severo como um tumulo fechado,
Serêno como um pélago quieto.
PHONOGRAPHO
Vae declamando um comico defunto,
Uma platêa ri, perdidamente,
Do bom jarreta… E ha um odôr no ambiente
A crypta e a pó, – do anachronico assumpto.
Muda o registo, eis uma barcarola:
Lirios, lirios, aguas do rio, a lua…
Ante o Seu corpo o sonho meu fluctua
Sobre um paúl, – extática corolla.
Muda outra vez: gorgeios, estribilhos
D’um clarim de oiro – o cheiro de junquilhos,
Vivido e agro! – tocando a alvorada…
Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã. Que effluvio de violetas!
Desce em folhedos tenros a collina:
– Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
Nos quaes a chamma do furor declina…
Oh vem, de branco, – do immo da folhagem!
Os ramos, leve, a tua mão aparte.
Oh vem! Meus olhos querem desposar-te
Reflectir-te virgem a serena imagem.
De silva doida uma haste esquíva
Quão delicada te osculou num dedo
Com um aljôfar côr de rosa viva!…
Ligeira a saia… Doce brisa impelle-a…
Oh vem! De branco! Do immo do arvoredo…
Alma de sylpho, carne de camelia…
Esvelta surge! Vem das aguas, nua,
Timonando uma concha alvinitente!
Os rins flexiveis e o seio fremente…
Morre-me a bocca por beijar a tua.
Sem vil pudôr! Do que ha que ter vergonha?
Eis-me formoso, môço e casto, forte.
Tão branco o peito!– para o expôr á Morte…
Mas que ora— a infame!– não se te anteponha.
A hydra torpe!… Que a estrangulo… Esmago-a
De encontro á rocha onde a cabeça te ha-de,
Com os cabellos escorrendo agua,
Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
Sob o fervor da minha virgindade
E o meu pulso de jovem gladiador.
Depois da lucta e depois da conquista
Fiquei só! Fôra um acto anthipatico!
Deserta a Ilha, e no lençol aquatico
Tudo verde, verde, – a perder de vista.
Porque vos fostes, minhas caravellas,
Carregadas de todo o meu thesoiro?
– Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrellas!
Quem vos desfez, formas inconsistentes,
Por cujo amor escalei a muralha,
– Leão armado, uma espada nos dentes?
Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhaes, de costas, nos olhos abertos
Reflectindo as estrellas, boquiabertos…
Quem polluiu, quem rasgou os meus lençoes de linho,
Onde esperei morrer, – meus tão castos lençoes?
Do meu jardim exiguo os altos girasoes
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiêsco!)
A mesa de eu cear, – tabua tôsca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
– Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…
Ó minha pobre mãe!… Não te ergas mais da cova,
Olha a noite, olha o vento.
Em ruina a casa nova… Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe… Não andes mais á neve,
De noite a mendigar ás portas dos casaes.
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