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Ramalho Ortigão
SENHORES:
A Vós, meus senhores e amigos, que sois, com o grande poeta Guerra Junqueiro e o illustre diplomata Marquez de Soveral, os derradeiros sobreviventes d'uma selecta companhia de homens-de-lettras e homens-do-mundo: é a Vós que eu me permitto offerecer este palido e leve estudo – ephemero artigo de indole folhetinesca – sobre determinada feição da personalidade litteraria de um dos Vossos.
Eu creio que ninguem, melhor do que Vós, avaliará o intuito admirativo e piedoso d'estas paginas de critica facil em que a exegese subjectiva quasi que completamente desappareceu para dar logar á palpação material ao facto litterario que mal encobre, na maioria dos casos, a genese espiritual d'onde provém.
Ramalho Ortigão foi bem e em verdade um preclaro representante da sua epocha mental; Vós, seus socios de Escóla e companheiros das veladas celebres, no aristocratico Braganza e na democratica Perna-de-Pau, ao lerdes este escripto, regressareis momentaneamente a essa já affastada quadra, em que o espirito esfusiou na troca de pontos-de-vista sobre as questões mais variadas e mais complexas que commoviam, então, a humanidade pensante. E, depois da visita retrospectiva a esse tempo saudoso, demorareis a vossa attenção, liberta de qualquer facciosismo, no quadro que nos offerece o Portugal de hoje e… concluireis.
A theoria da «Arte pela Arte», onde a vossa Escola entroncava, conduzia o artista em geral, e muito particularmente o homem-de-lettras, á inteira despreoccupação do significado moral da sua obra e das consequencias que d'ella resultariam para a vida pratica. Ia-se mais longe: essa vida pratica inspirava o maior dos despresos e tanto que, para muitos, elle chegou a ser formulado no seguinte paradoxo – o pensamento jamais poderá influir na vida pratica!
«O unico dever do philosopho, do poeta, do auctor dramatico e do romancista – diz-nos T. de Wyzewa, n'um estudo sobre o Disciple– era procurar exprimir plenamente as suas ideias, os seus sentimentos, os resultados da sua observação ou da sua phantasia sem se preoccupar com os vãos e estupidos lamentos do cego rebanho dos «moralistas» de qualquer proveniencia e feitio».
A grande massa dos leitores portuguezes dos livros de Oliveira Martins, dos romances de Eça e das Farpas de Ramalho não tinha a preparação sufficiente para distinguir um processo artistico nas malhas tecidas com oiro d'aquelles trechos lapidares. Direi mais: a maioria dos leitores dos romances de Eça perdia o fio da efabulação, levada, attrahida como que n'uma suggestão hypnotica pelo pormenor picante que lhe passava, nos lombos, um arrepio delicioso…
Quem viu na Reliquia, por exemplo, o castigo da hypocrisia e a rehabilitação do hypocrita quando se decidiu a trabalhar e a pôr de banda a mentira?
E, sem contestação, se não fosse este tenue veiosinho doutrinario (e, é claro, aquelle assombroso sonho palestiniano, inspirado, talvez, na vulgarisação d'um evangelho apocrypho por Petruccelli della Gattina) o que ficaria d'essa colossal Reliquia senão o monumento mais monstruoso, mais gratuito e mais perversamente levantado, pelo genio, á indignidade das lettras?
De fórma que esses livros, peccando pelo que em si continham de pernicioso, lançados para um meio que não sabia dar-lhes o desconto das demasias, duplamente eram perigosos.
Pois padece duvida que a concepção dos nossos deveres e direitos nos advém das emoções estheticas ou intellectuaes que os Mestres verteram com subtileza e tacto, atravez das suas obras, no nosso espirito ávido de luz?!
E não é certo que essas emoções serão tanto mais fortes e duradouras quanto mais bello e paramentado de atavios seja o seu fautor?!
Da obra hegemonica (e chamo-lhe assim porque a obra-de-regresso é pequena e tardia) d'estes tres grandes vultos litterarios, a de Ramalho, sendo talvez aquella que mais influencia teve por – pela sua indole e facilidade de acquisição – penetrar n'um maior ambito de ledores, em todo o caso, é a que menos presta o flanco ás tremendas responsabilidades de ter fomentado este estado de espirito e de factos que caracterisa a Actualidade Portugueza.
O Sr. Dr. Ricardo Jorge, n'um, como todos os que da sua penna diamantina saem, estudo magistral ultimamente publicado sobre o illustre morto, diz-nos:
«Ramalho, o censor, alía n'uma congruencia equilibrada o cosmopolitismo ao congenialismo; domina-o o instincto racial e topico…», profunda observação, d'um analysta consumado, que explica muitas das passagens, se não todo o recheio d'este desataviado escripto, que a Vós, meus senhores e amigos, dedico, porque de Ramalho fostes socios e companheiros, esperando que, ao lêl-o, n'elle reconheçaes (como para si desejava Louis Blanc) o accento d'uma voz sincera e as palpitações d'um coração sedento de justiça.
1915, 2 de Des.º
H.
«As Farpas eram iconoclastas: vinham para desmantelar os bustos olympicos, deviam deixar aos S. Paulos o cuidado de plantar as cruzes.»
A morte de José Duarte Ramalho Ortigão, um dos ultimos sobreviventes d'uma grande geração de espiritos altos, suscitou um movimento quasi unanime de sympathia, de piedade, de saudade e de admiração (que é consolador enaltecer e util conservar de memoria) por esse glorioso escriptor e por esse grande homem de bem.
Quando, em 1878, Eça de Queiroz escrevia, de Newcastle, a Joaquim de Araujo, aquella tão conhecida e tão citada carta, que constitue a biographia do espirito de Ramalho Ortigão, essa biographia ficou definitivamente feita; tudo o mais que se lhe accrescente – e bastante se tem escripto – não passa, em ultima analyse, de sabias e eruditas variações sobre aquelle leit motif.
De modo que todos esses artigos, alguns celebres, servem mais para determinar o estado-d'alma dos seus auctores – o que é convenientissimo para a historia litteraria – do que propriamente para subsidiar a obra e os intuitos do auctor das Farpas e da Hollanda. O que Eça de Queiroz, com a percuciente e genial agudeza do seu engenho, não podia, ha 30 annos, determinar: era quaes fossem os motivos de ordem intellectual e moral que haveriam de transformar o vibrante pamphletario d'então, no corajoso, no desassombrado, no vibrante auctor do Rei D. Carlos, o Martyrisado. E o que, talvez, elle ainda menos podesse, era demarcar o caminho, a trajectoria que haveria de percorrer um espirito educado já fóra do catholicismo e do romantismo ou tendo-se emancipado d'elles, reclamando-se exclusivamente da Revolução e para a Revolução até talhar, para mortalha do seu despojo terreno, o habito d'uma ordem monastica!
Gloria a Deus por ter consentido que, no anno da Graça de 1915, me fosse dado lêr na Capital (28 de Setembro):
«Ramalho Ortigão é ainda uma figura a estudar e na mudança das suas opiniões cumpre não ver causas e intuitos que lhe deprimam o caracter».
Julio Dantas, na Illustração Portugueza (n.º 503 de 11 de Outubro) escreve:
«… era a affirmação veemente d'um caracter cheio de elevação moral, de nobre independencia e de orgulhoso desprendimento».
E Lopes de Mendonça, em nome da Academia das Sciencias de Lisboa, pronuncia, sobre o caixão, que vae desapparecer para sempre, palavras repassadas de sentimento:
«A sua vida de trabalhador honrado foi um exemplo e um estimulo… Chegou-lhe a hora da paz imperturbada. Quando nos couber a vez de a compartilharmos que seja tão serena, como a d'elle, a nossa consciencia.»
São testemunhos insuspeitos e por isso não é demais celebrar-lhes a nobreza e a sinceridade, quando lhes seria mais commodo remetterem-se, no capitulo da mudança de opiniões, a um discreto silencio ou explical-a physiologicamente pela cachexia senil.
A lição a tirar dos trechos citados, e de muitos outros que seria prolixo accumular, é a respeitosa, a enternecida unanimidade de pareceres sobre a perfeita hombridade civica e moral de Ramalho Ortigão até aos ultimos instantes da vida, porque, quando nos chegar a vez de compartilharmos a paz imperturbada, que a nossa consciencia seja tão serena como a d'elle!
Mas não foi só Ramalho que mudou de ideias, regressando a principios de