Victory Storm

Atração De Sangue


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desgosto, uma vez que ela me ajudou a estudar para o teste.

      O autocarro parou em frente à quinta, pouco antes do fim do Caminho das Quatro Cruzes, que ficava ao pé do espesso pinhal de Landskare.

      «Terminal» gritou-me do lugar do condutor Joshua, o motorista, distraindo-me das minhas preocupações.

      «Obrigada. Vemo-nos amanhã» cumprimentei-o distraída.

      «Até amanhã, Vera».

      Poucos metros e cruzei o portão da quinta.

      Vi Ahmed, o nosso velho faz-tudo tunisino, tentando reunir as galinhas na capoeira.

      «Ahmed, olá! Como foi o teu dia?» perguntei-lhe amavelmente.

      O homem soltou um grunhido.

      «Frio húmido e dor de costas» respondeu Ahmed.

      Foi sempre um homem de poucas palavras. Depois de dez anos de convivência, já tinha percebido que adorava estar comigo e com a tia, mas detestava o clima chuvoso irlandês, que lhe causava frequentemente qualquer dor nos ossos.

      «Vamos lá, digo à tia para preparar-te a habitual compressa, que te dá sempre tanto alívio» consolei-o.

      Ahmed sorriu-me com gratidão.

      Sem dizer mais nada, atravessei a porta da entrada de casa.

      Perfume de tarte de maçã. A minha preferida.

      Isto significava duas coisas: a primeira, que eu não podia contar à minha tia acerca da minha má avaliação para não estragar o dia e a segunda, que em casa estava o padre Dominick, o padre mais simpático e generoso do mundo.

      Ele também adorava tarte de maçã por isso, a tia Cecília preparava-a sempre que ele nos fazia uma visita.

      Tirei os sapatos, o casaco e a mochila à entrada e dirigi-me ao salão, onde a minha tia conversava divertida com o padre Dominick.

      «Olá.»

      «Vera, tesouro, vem. Esperávamos por ti para o chá» convidou-me a tia com a sua voz mórbida e doce, que ponha sempre todos à vontade.

      «Vera, olá. Passou apenas um mês desde a última vez que te vi, mas parece-me que estás mais crescida» cumprimentou-me o padre.

      «Se crescesse pelo menos um centímetro todas as vezes que mo diz, agora teria quase três metros de altura» respondi rindo.

      Também Dominick soltou uma estrondosa risada.

      Ele nunca se ofendia perante as minhas piadas e a tia já não lhes dava importância.

      Depois chegou o lanche. A tia serviu o chá e a tarte de maçã.

      Mal afundei os dentes no doce perfumado, senti-me logo melhor, até que me engasguei por causa da pergunta da minha tia.

      «Como correu a escola?» perguntou-me.

      «Bem».

      «O professor Hupper entregou-te o teste de biologia?».

      Será possível que a minha tia nunca se esqueça de nada?

      Como fazia para ter sempre a mínima coisa sob controlo?

      «Não» menti, procurando concentrar-me no aroma do chá.

      Ainda estávamos a acabar de lanchar, quando tocou o telefone.

      «Eu vou lá. Será seguramente o Duncan McDowell acerca da história do gado que comprei antes de ontem» pensou a tia em voz alta.

      Apenas a tia se afastou (era mesmo o Duncan McDowell ao telefone), o padre Dominick dedicou-me toda a sua atenção.

      «E então, como estás?» perguntou-me com um olhar sério.

      «Bem».

      «Pensaste naquilo que te disse da última vez acerca do amor de Deus?».

      «Sim, mas já te disse que tenho dúvidas acerca da justiça do Senhor. Neste mundo existem muitas coisas erradas. Eu não vejo todo esse amor de que fala».

      «Está dentro de nós».

      «Sim, mas então porque tantas pessoas cometem pecados? Sem contar que muitas vezes os mais afortunados são aqueles que menos merecem» me enervei.

      O padre rendido sacudiu a cabeça. Há já alguns meses que me falava de amor, misericórdia e justiça divina e eu continuava a trazer à baila episódios de injustiça quotidiana ou de guerras.

      «Então, tu nunca cometes pecados?».

      Aqui está, tinha chegado o momento da confissão.

      «Não, nunca» desafiei-o.

      «É já pecado dizer uma frase deste género» repreendeu-me.

      «Pois. Ao menos agora posso dizer-te que menti, logo pequei» fiz troça dele.

      O padre olhou-me confuso por um instante.

      «É tudo?».

      «Na verdade, também roubei dinheiro à minha tia para comprar cigarros, depois bati numa colega minha e por fim, também copiei no teste de biologia» concluí divertida ao ver a expressão chocada sobre o rosto do Dominick.

      Não consegui controlar o riso e isto tranquilizou muito o velho padre.

      «Fizeste isto tudo?» murmurou hesitante.

      «Mas achas que eu posso fumar com todos os problemas que tenho devido à minha anemia? Para além disso, nunca poderia roubar dinheiro à minha tia, que já faz mil sacrifícios para manter-nos. A renda que recebe mensalmente mal chega para nós e estamos com um atraso de duas semanas relativamente ao pagamento de Ahmed» esclareci com voz firme.

      «Mas bateste realmente numa colega tua?».

      «Nem de perto, apesar de não te negar que gostaria de o fazer. Patty Shue é a pessoa mais repugnante do mundo. Só porque é bela e simpática acredita que é superior aos outros» deixei escapar.

      «Já te disse que deves ignorar aquela rapariga».

      «Sim, mas não o consigo fazer, pois chateia-me sempre. Diz que sou cadavérica. Imagina o comportamento dos meus companheiros masculinos quando me veem na sua presença. Um fantasma meteria menos nojo!».

      «Esquece-a».

      Soltei um grande suspiro irritada. Bastava-me falar de Patty Shue para ficar de mau humor.

      «Pelo menos diz-me se é verdade que copiaste no teste» perguntou-me, tentando mudar de discurso.

      «Não, na realidade tive um quatro» confessei aflita.

      «A tia já sabe?»

      «Não sei como dizê-lo. Penso que desta vez, vou fazer de conta que não aconteceu nada» planeei.

      «Vera» voltou a olhar para mim com o olhar carregado de crítica.

      «Estou a brincar».

      «Fizeste mais alguma coisa, por acaso?».

      «Na realidade, sim» sussurrei com um fio de voz.

      «Que coisa?».

      «Anteontem, fiz uma hemodose às escondidas».

      O padre Dominick permaneceu petrificado pelo choque.

      «Já não te chega uma dose a cada vinte dias?» perguntou-me preocupadíssimo.

      «Sim, mas ultimamente esforcei demasiado o meu organismo e dei por mim com as energias baixas. Na escola tivemos um substituto de motora, que não conhece o meu problema, por isso fez-me fazer um monte de exercícios cansativos».

      «Mas porque não lhe disseste?».

      «Ia dizer-lhe, mas depois aquela idiota da Patty Shue começou a gritar para a professora que a “doentinha”, ou seja, eu não podia fazer isto e aquilo e fiquei irritada.