Maria Cristina Francisco

Olhos negros atravessaram o mar


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No entanto, desde que se manifesta como tipo fundamental e estável de relações de produção, a escravidão dá lugar não a um único, mas a dois modos de produção diferenciados: o escravismo patriarcal, caracterizado por uma economia predominantemente natural, e o escravismo colonial, que se orienta no sentido da produção de bens comercializáveis. [...] cabe indagar o que caracteriza a escravidão como categoria sociológica.

      A característica mais essencial, que se salienta no ser escravo, reside na condição de propriedade de outro ser humano (GORENDER, 1985, p. 46).

      Sobre a experiência de estar no navio negreiro, trazemos relatos do romance Um defeito de cor.

      [...] O navio tinha dois porões, e o de baixo, onde fomos colocadas, era um pouco menor. Também não tinha qualquer entrada de luz ou de ar.

      [....] Os tocheiros iluminavam rapidamente o caminho e os rostos dos que chegavam, acompanhados da ordem de nos deitarmos um ao lado do outro, com as cabeças apoiadas na parede do navio, que déssemos uma volta completa. E depois mais uma volta no interior, e mais uma terceira, sendo que muitos ainda sobraram de pé e foram empurrados por cima dos que já estavam deitados. [....].

      Durante dois ou três dias, não dava para saber ao certo, a portinhola no teto não foi aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase impossível respirar. Algumas pessoas se queixavam da falta de ar e do calor, mas o que realmente incomodava era o cheiro de urina e de fezes. [....]. As pessoas enjoaram inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estomago, pois não comíamos desde o dia da partida. O corpo também doía, jogado contra o chão duro, molhado e frio. [....]. Quando uma pessoa queria se mexer, as que estavam ao lado dela também tinham que se mexer, o que sempre era motivo de protestos. [....].

      Os guardas colocaram os homens em fila e, um por um, tiveram que dizer o nome africano, o que podia ser revelado, e é claro, e o lugar onde tinham nascido, que eram anotados em um livro onde também acrescentavam um nome de branco. Era esse nome que eles tinham que falar para o padre, que então jogava água sobre suas cabeças e pronunciava algumas palavras que ninguém entendia.

      [....] Alguém lembrou que o padre também tinha dito que, a partir daquele momento, eles deviam acreditar apenas na religião dos brancos. [....].

      [...] Talvez tivessem nos deixado tantos dias sem comer para que, mesmo com raiva, ficássemos suficientemente fracos para não reagir. [....] Cada um recebeu a sua parte (carne salgada, farinha e feijão). Cada um recebeu a sua parte em cumbucas de casca de coco, e foram distribuídas algumas vasilhas de água que passaram de mão em mão e não foram suficientes nem para metade de nós, tamanha a sede. Mas, na manhã seguinte, três homens apareceram mortos, tinham se enforcado durante a noite. [....].

      [....] e nos dias seguintes outras pessoas adoeceram. [....]. Alguns diziam que era porque estávamos ali havia muitos dias, no meio daquela imundície toda, respirando um ar que não era de gente respirar, sem ver o sol, sem tomar chuva, sem nos lavarmos, sem comer e sem beber água direito. [....] Olharam pela portinhola aberta no teto e logo mandaram fechar. Voltaram mais tarde, com os rostos cobertos por panos [....]. Somente os olhos deles estavam de fora, e percebi que tinham um olhar de nojo e medo. [....] Escolheram alguns homens mais fortes e fizeram com que eles tirassem dali mais dez pessoas, todas muito doentes, que depois soubemos terem sido jogadas ao mar.

      [....] A comida começou a apodrecer por todo o chão do navio, porque muitos, e eu também, já não tínhamos mais apetite, e ao cheiro dela se juntava o cheiro de xixi, de merda, de sangue, de vômito e de pus. Acho que todos nós já queríamos morrer no dia em que abriram a portinhola e mandaram que nos preparássemos para sair. [....].

      [....] Tentei me levantar e caí várias vezes antes de conseguir me manter de pé, não só por causa da fraqueza, mas porque as pernas pareciam ter se desacostumado do peso do corpo, sempre deitado. [....].

      [....] Foi só à luz do dia que percebi como parecíamos bichos, sujos e feios...[....].

      [....] Não sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se medo. Mas a pior de todas as sensações, mesmo não sabendo direito o que significava, era a de ser um navio perdido no mar, e não a de estar dentro de um. Não estava mais na minha terra, não tinha mais a minha família, estava indo para um lugar que não conhecia (GONÇALVES, 2012. p. 45-46, 48-51, 53, 56-58, 61).

      O povo negro chegava da África de vários portos, direcionado para todo o território do país (Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Porto Alegre, Bahia, Pernambuco, norte do país - Amazônia). Já nos EUA, a concentração ocorreu predominantemente no sul, pois no norte havia outro modelo econômico. Com essa observação, nota-se que todo o território brasileiro passou a conviver com os estereótipos negativos sobre o corpo negro.

      A migração forçada foi principalmente de homens jovens adultos. Uma vez comprados por um “senhor”, eram transportados para as fazendas, para os engenhos de cana-de-açúcar e depois para a produção de café. Durante o século XVIII, algumas regiões se destinavam à mineração de ouro e diamante. Os demais iam para a região urbana (sobrados, igrejas), e as mulheres puérperas serviam como amas de leite.

      Os escravizados passavam a viver em alta vulnerabilidade de vida devido à ausência de tudo; as mulheres sofriam a ameaça da violência sexual do seu “senhor”; a maioria vivia em péssimas condições nas senzalas (moradia) - locais insalubres, desumanizados, brutalizados -, além de haver o uso da chibata e do tronco como formas de castigo e opressão (“lição pública”). Nessa exposição, eram exibidas a todos as consequências da rebeldia. As crianças não saíam impunes - a surra de vara e de palmatória ou purgantes amargos tinham seu uso recorrente como reprimenda. Essa cotidiana realidade perversa vivenciada certamente levava a um estado de tensão corporal absurdo. Sentimentos como banzo (melancolia - luto pela falta de sua terra natal) e desconfiança constante eram presentes. Viver sem esperança de liberdade ou de sonhos de alforria, praticamente impossíveis - acreditamos que essa condição gerou muito desalento, raiva e desamparo, uma tragédia na condição humana.

      No entanto, na luta pela sobrevivência, mesmo em condições dificílimas de fuga, com a prática da luta capoeira, os quilombos se firmaram como uma realidade possível. Durante esse período, houve outras formas de resistência do povo negro, como suicídios (comer terra até a morte ou infligir-se envenenamentos).

      Neste ponto, será importante discorrer um pouco sobre o significado dos quilombos. Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho Ultramarino, Alfredo Wagner Berno de Almeida, em Os quilombos e as novas etnias (2011, p. 39), mostra que aquela definição se constitui basicamente de cinco elementos: 1) fuga; 2) quantidade mínima de “fugidos” definida com exatidão; 3) localização marcada por isolamento relativo, isto é, em “parte despovoada”; 4) moradia consolidada ou não; 5) capacidade de consumo traduzida pelos “pilões” ou pela reprodução simples que explicaria uma condição de marginal aos circuitos de mercado.

      O conceito de quilombo não pode ser territorial apenas ou fixado num único lugar geograficamente definido, historicamente “documentado” e arqueologicamente “escavado”. Ele designa um processo de trabalho autônomo, livre da submissão aos grandes proprietários. Neste sentido, não importa se está isolado ou próximo das casas-grandes. Há uma transição econômica do escravo ao camponês livre, que só indiretamente passa pelo quilombo no caso do Frechal. O que não foi concebido no lugar onde se ergueu o quilombo, foi obtido a partir de debilitado o poder da casa-grande e bem junto a ela. Este talvez seja o elemento mais controvertido e que dificulta aos historiadores ortodoxos entender a dinâmica do que seria a “essência” do significado de quilombo (ALMEIDA, 2011, p. 45).

      Se por um lado existia a Senzala, por outro existia