que são, por si mesmos, patógenos. Apenas no contexto disso tudo é que conseguimos compreender o psicólogo como reprodutor de técnicas, sejam elas clínicas, sejam elas educacionais, ou mesmo presentes em empresas e organizações.
C. M. R.: E isso vai ao encontro do que Lacan falou, sobre como sair da ética para um exercício do poder.
C. D.: Exatamente. Aquele que não consegue sustentar a suas práxis, autenticamente, vai se lançar num exercício de poder. É exatamente isso. Como é que você mantém a autenticidade de uma prática ética? A partir da formação do desejo. E como se forma um desejo? Não é só no curso de Psicologia, mas também começa nele, quando você começa a se perceber e a reparar que tudo depende de como você coloca o seu desejo e de como forma o seu desejo de analisar. Ou seja: não o desejo de ser analista, fazer o bem, de ganhar dinheiro, de ficar na profissão, mas sim o desejo de analisar. E isso é complicado, porque não há muita referência, é uma coisa artificial, não segue a inércia. A inércia é a gente fazer relações de mestria, universitárias, relações histéricas, não relações a partir do desejo de ser analista, propriamente.
C. M. R.: Você falou da formação da Psicanálise no Brasil com relação à Psicologia. Pensando nesse nível mais amplo, como está hoje a formação em Psicanálise na América Latina? Como você avalia esse quadro maior?
C. D.: A Psicanálise é uma força emergente, um tipo de Psicologia, que foi contra todas as previsões… Nos anos oitenta e noventa, Freud estava sendo enterrado (e Lacan junto com ele…), graças ao lugar social que a Psicanálise ocupa nos países centrais, da Europa, mas não nos Estados Unidos. Na América Latina, posso falar mais propriamente sobre a situação da Argentina, da Colômbia, um pouco do Peru e Chile também, bem como sobre o Uruguai, aonde vou com relativa frequência. Nesses lugares, a Psicanálise é uma forma de saber, de prática universitária de excelência. Então, o que você tem nesses países é que, justamente porque os psicanalistas se engajam em uma formação permanente, eles acabam alcançando posições universitárias mais pujantes. Muitos estão fazendo doutorado, estão se tornando professores, e existem muitos grupos de estudo, muitos grupos de pesquisa, cada vez mais articulados entre si. A América Latina começa a conversar e a circular. Você e eu, por exemplo, temos esse contato com o pessoal da Colômbia, então fazemos livro juntos, e isso é um autodiagnóstico da situação.
Acho que há também uma ligação importante (e, a essa altura, mais nova) entre a Psicanálise e as teorias críticas. Uma aliança que vem se fazendo da Psicanálise com a teoria feminista, com a teoria queer, com pensamentos como o de Ernesto Laclau, Slavoj Žižek, Alain Badiou, Michel Foucault, com a esquizoanálise… Enfim, um grupo bastante extenso do que podemos chamar de teorias críticas ou, em alguns lugares, de estudos pós-coloniais. E todos eles debatem fortemente com a Psicanálise, às vezes com mais tensão, às vezes com mais compromisso. Mas o que temos aí é que, no fundo, a Psicanálise acabou, dentro das Psicologias, sendo a forma que mais se preocupa, exaustivamente, com a construção e a crítica de conceitos, análise e confrontação de teorias.
Na Europa, por exemplo, existe uma divisão muito curiosa entre aqueles que fazem Psicologia (e isso quer dizer sem o método experimental) e aqueles que fazem teoria. Como se, ao fazer pesquisa stricto sensu, eles se incumbissem de pensar e criticar conceitos, de avaliar, permanentemente, a condição discursiva do seu próprio fazer. Isso tem chegado a uma espécie de colapso, de modo que hoje há esse escândalo de 61% das pesquisas stricto sensu feitas nos Estados Unidos não serem replicáveis, pois são farsas científicas. Você tem, por outro lado, uma série de estudos que têm mostrado que a Psicanálise pode se justificar, sim: ela não é uma pseudociência, não é uma lavagem cerebral; ela tem suas limitações epistêmicas, mas ela faz parte do debate. Então, tem havido uma mudança no tom e isso tem vindo, com muita força, da América Latina, em países como México e Costa Rica, por exemplo. Nesse sentido, tem-se produzido um tipo de teorização que está sendo acolhidoe que está se conectando com diferentes teorias críticas nas Ciências Humanas e na Psicologia no resto do mundo.
C. M. R.: Muito legal isso que você coloca. Já que você falou sobre o produtivismo, me lembro de que, em uma de suas aulas, você deu o exemplo do falso moedeiro, que é aquele cara que compra pontos no Lattes, que faz coisas que não deveria. Como é que você pensa essa questão do impacto desse produtivismo acadêmico no ensino da Psicanálise e o que a gente pode fazer com isso?
C. D.: Ótima pergunta. Por um lado, os psicanalistas se viram em uma relação relativamente favorável no quadro produtivista, porque eles têm revistas, eles têm encontros, têm certa facilidade para publicar, em alguns casos eles têm dinheiro, têm um público que lê pesquisa e que não são especificamente os pesquisadores. Isso é completamente inusitado se a gente comparar com estudos muito específicos, no âmbito dos quais há meia dúzia, ou dez, vinte pesquisadores no mundo, um público seleto. Então, é legal e muito importante que se tenha isso, só que a Psicanálise tem essa outra característica. Agora, por outro lado, há uma resistência espontânea a isso, porque essa atitude, no fundo, está transformando os nossos professores em administradores, em gestores.
Quanto mais se vai entrando na carreira universitária, mais você vai sendo tirado da experiência da pesquisa, da aula, do contato com as questões de publicação, de conceito, de estudo, e você vai virando outra coisa, vai virando um membro de colegiado, ou então um redator de pareceres para revistas. Não existem as fake news? Existe também o fake teacher, a fake university, um mundo completamente artificial, falso, desgarrado de qualquer laço com a realidade e que gira em torno de si mesmo, produzindo, inclusive, um lixo industrial de trabalhos, mais ou menos amigados, para marcar pontos no seu currículo Lattes, apenas para que seu programa de pós-graduação vá para uma posição melhor, de modo que seus alunos tenham bolsas e você possa conseguir, enfim, mais apoio do Estado. Mas isso é um completo descaminho. Claro que algum controle é interessante, alguma avaliação é benéfica, mas o que tem acontecido é que nós transformamos os critérios de avaliação nos nossos objetivos. A gente não faz mais pesquisa, marca pontos no Lattes; a gente não cria mais ideias, mas serve a editoriais e publicação. Isso é uma inversão de meio e fins. Aliás, de práxis, pois a Psicanálise é uma práxis com certa montagem, em que os meios, os fins, os outros e nós mesmos, enfim, andemos na copresença.
Essa industrialização universitária é completamente contrária ao espírito psicanalítico, ainda que nós tenhamos essa posição, mais ou menos favorável, por contingência. Entretanto, devemos fazer a crítica dos falsos moedeiros, as moedas gastas do Mallarmé, aquelas de que não conseguimos mais ler a efígie, portanto não conseguimos mais trocar… Isso tudo precisa ser, imediatamente, revisto –e está sendo. Percebemos que estava havendo uma consciência um pouco mais clara de que o sistema não foi feito para servir a si mesmo, mas sim para ajudar as pessoas, a sociedade civil, a resolverem seus problemas reais, o que sofrem, etc.
C. M. R.: Quais acertos, desacertos e contradições você consegue perceber na história da formação em Psicologia?
C. D.: É difícil, porque, na história, cada cultura seria de um jeito. Por exemplo, pensar São Paulo e Tocantins: são momentos diferentes. Vamos pensar assim: na América Latina, nós tivemos alguns recortes mais ou menos recorrentes, mas que não foram sincrônicos. Nós temos um primeiro momento em que a Psicologia chega por parte do nosso processo colonial, como um conjunto de ideias fora do lugar, que são aplicadas para reforçar os laços de poder e dominação na inflação, na psiquiatria e nas empresas. Isso é atravessado pelas ditaduras militares e pelos regimes opressivos em diferentes países nos anos setenta, que é uma década em que a Psicologia está se institucionalizando e aparecendo como curso independente. Trata-se de algo muito marcante e que explica a diferença da nossa Psicologia em relação àquela praticada na Ásia, na África, em outros universos. Nós fomos formados em uma experiência política segundo a qual a Psicologia foi chamada a tomar a posição diante de regimes opressivos. Então, ao mesmo tempo, historicamente, temos uma demanda para a discussão da cientificidade da Psicologia e outra para a discussão do seu potencial de transformação crítica da realidade.
Acho