Sheena Kamal

Tudo se desmorona


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cuidado para manter um tom neutro.

      Lam arqueia uma sobrancelha, como se não pudesse existir outra possibilidade.

      Brazuca decide não insistir.

      — O que precisas?

      — Continuas a trabalhar para essa agência pequena de detetives privados? Dão-te dias de folga?

      — Aceito contratos conforme precisam. São flexíveis. — Os seus novos chefes não são seletivos com o trabalho que escolhe, desde que trabalhe. Até o tinham convidado a tornar-se sócio de forma mais oficial, mas dissera que não a isso. Não quer algo oficial.

      — Muito bem — diz Lam. — Muito bem. Quero que descubras quem é o traficante dela.

      — Bernard…

      — É claro, serás recompensado generosamente.

      — Não é por causa do dinheiro.

      — Então, fá-lo por um amigo. Fá-lo por mim. A minha rapariga e o meu filho morreram. Quero saber quem é o responsável.

      Brazuca questiona-se se Lam sabe que, ao usar a palavra «rapariga», os desenhou com a mesma inocência idealizada.

      — Não vais gostar do que vai sair daqui — avisa, com calma. — Não vai dar-te tranquilidade. — A morte por overdose é algo desagradável que tem de ser enfrentado. Não é fácil culpar alguém.

      — Quem diz que quero tranquilidade? — Lam serve um golinho de uísque no copo e bebe. — Vou dar-te os papéis e os seus contactos. Não encontraram nada no telemóvel dela. A droga que tomou… — Desvia o olhar e ordena os pensamentos. — Era cocaína misturada com um opiáceo sintético novo que circula pelas ruas. Um derivado do fentanil mais potente do que se viu até agora e, de facto, mais forte do que o fentanil. Chama-se YLD Ten.

      — Wild Ten? Ouvi falar dela. Não muito. Mas sei que se mexe por aí. — Era esse nome estúpido que chamava a sua atenção. Era fácil de recordar quando se faz um pedido ao traficante simpático do bairro.

      — Então, deves saber como é perigosa. Tinha apenas vinte e cinco anos. Tinha toda a vida pela frente, Jon, e era uma vida comigo. Tenho de saber. Por favor.

      — Está bem — acede Brazuca, passado um minuto. Porque não é o tipo de homem que consegue ignorar um grito de socorro. Não virou a página como gostaria de pensar. — Vou dar-lhe uma olhadela. Tens a chave do apartamento dela?

      — É claro — confirma Lam. — O apartamento é uma propriedade minha.

      — Claro — murmura Brazuca. — Vou tratar disso imediatamente. — Não é preciso dizer «senhor» porque está implícito. Bernard Lam, que lhe salvou a vida há vários anos, é alheio a essa indireta.

      4

      Estou outra vez aqui, em casa da minha casa irmã, a leste de Vancouver. É sábado e só se sabe que é de tarde graças ao relógio. A neblina não é tão densa como ontem, mas continua presente. Ainda esconde a luz do dia e gera imagens aterradoras de pulmões de fumador para os loucos da vida saudável, que não param de fazer passeios ou de andar de bicicleta nestas condições, mas que se queixam sem parar enquanto o fazem. Ouvi dizer que há outro incêndio florestal em Sunshine Coast e o vento está a arrastar o fumo para cá.

      Vancouver não está a arder, mas, certamente, parece.

      Esperei que o carro de Lorelei se afastasse para me aproximar do portão estreito que leva ao jardim. O marido, David, está sentado no alpendre pequeno, a observar o seu jardim patético. Há algumas especiarias que tentam ganhar força, mas não conseguem competir com a menta, que cresce como as ervas daninhas, mesmo nesta atmosfera pós-apocalíptica. Parece que quer manter-se positivo, mas não consegue. Sinto pena dos homens como David, os homens decentes e trabalhadores do mundo. Por muito que tentem, as coisas mais simples parecem incomodá-los. Nem sequer consegue colher algo comestível da terra.

      Está a beber uma cerveja light e não se incomodada em levantar-se quando dobro a esquina. Da última vez que nos vimos, atirou-me algum dinheiro e pediu-me para me manter afastada de Lorelei. Não parece surpreendido ao ver que infringi o nosso acordo. Depois, vê a Whisper e um sorriso de satisfação aparece-lhe na cara. Parte do motivo por que a trouxe comigo foi porque os amantes dos cães são fáceis de manipular. Ela entende o seu papel suficientemente bem para se aproximar a correr e cumprimentar o sexo dele com o focinho. Zás. Alegro-me por te ver.

      — Quem é esta menina tão boa? — pergunta, sorrindo enquanto a acaricia atrás das orelhas. — Quem é?

      E, então, olha para mim. O sorriso desaparece. Tento não me sentir ofendida. De todos os modos, as meninas boas estão sobrevalorizadas.

      — A caixa amarela — digo. Não há razão para andar com indiretas.

      Pensa por um instante e, depois, toma uma decisão.

      — Lá em cima, no armário do quarto de hóspedes. Prateleira de cima.

      Passo junto dele e entro na casa. As minhas visitas à casa da minha irmã costumam ser clandestinas, de modo que, ao princípio, não sei bem como proceder. Devia mexer-me de um modo diferente agora que tenho permissão?

      A casa de Lorelei é como a personalidade dela. Sóbria, ordenada e um pouco insossa. Aqui, não há lugar para surpresas. A caixa está onde me disse que estaria. Quando volto a sair com a caixa de sapatos amarela por baixo do braço, descubro que as coisas progrediram com a Whisper. Está ocupada a desfrutar das carícias de um homem. Está deitada de barriga para cima, oferecendo a barriga para que a esfregue. A ninfomaníaca.

      — Obrigada — agradeço a David, quando volta a olhar para mim.

      Assente.

      — Vais dizer-lhe que vim?

      — Não, a não ser que se aperceba da falta da caixa. Mas há anos que não a abre, portanto, não me preocuparia.

      Eu também assinto e ambos fazemos um gesto com o pescoço para tentar superar o momento incómodo que vivemos. Agora, existe um acordo entre nós. Um segredo. O marido da minha irmã e eu combinámos que Lorelei não deve saber que estive aqui e que levei uma coisa dela. Não vou dizer-lhe porque já não me fala. O silêncio de David sobre o assunto deve-se a uma culpa mal entendida sobre a nossa relação tensa. Embora não tenha nada a ver com ele. Porém, David é um bom homem e não me negaria o que resta do meu pai, tudo guardado convenientemente numa caixa que, antes, continha uns sapatos de salto de Lorelei, tamanho trinta e oito.

      Fecho ligeiramente as pernas. A pressão aumenta mais devagar do que gostaria. Mais devagar do que estou habituada. E, então, acaba, muitos segundos depois do que costumava demorar. Não sinto vergonha, o que suponho que seja um avanço, mas, claro, também não sinto grande coisa.

      Continuo com a impressão de que me observam, mas o ângulo está errado.

      Quando afasto os joelhos das marcas que deixaram junto da cabeça do desconhecido, interrogo-me se a viagem até aqui terá valido a pena. Não encontro uma resposta, não enquanto visto as calças de ganga, nem sequer quando lhe desato as mãos dos postes da cama e me dirijo para a porta. Como o clichê em que me transformei, o dinheiro está num envelope em cima da cómoda.

      Encontro a resposta quando já estou a meio do estacionamento do hotel.

      «Sentar-me-ei na tua cara», diz o anúncio que publiquei online. «E terás as mãos atadas. Quando acabar, vou-me embora. Sem compromisso. Sem tolices. Sem jogos. Os meus dentes são mais afiados do que os teus.»

      Depois, ponho uma quantia razoável que estou disposta a pagar.

      Em geral, é um anúncio insultante. Cheguei a odiar-me mais do que os solitários estúpidos que respondem, mas ainda não me cansei. Chego ao orgasmo e, depois, vou-me embora e, ao princípio, funcionava bem.

      O meu velho Corolla