August Nemo

Romancistas Essenciais - Lima Barreto


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desdéns dissimulados, deixando perceber ao velho empreiteiro o quanto estava ele distante da sociedade das amigas e das colegas de Olga.

      Não se aborrecia, porém, muito profundamente; ele assim o quisera e a fizera, tinha que se conformar. Quase sempre, quando chegavam tais visitas, Coleoni afastava-se, ia para o interior da casa. Entretanto, não lhe era sempre possível fazer isso; nas grandes festas e recepções tinha que estar presente e era quando mais sentia o velado pouco-caso da alta nobreza da terra que o freqüentava. Ele ficava sempre empreiteiro, com poucas idéias além do seu ofício, não sabendo fingir, de modo que não se interessava por aquelas tagarelices de casamentos, de bailes, de festas e passeios caros.

      Uma vez ou outra um mais delicado propunha-lhe jogar o poker, aceitava e sempre perdia. Chegou mesmo a formar uma roda em casa, de que fazia parte o conhecido advogado Pacheco. Perdeu e muito, mas não foi isso que o fez suspender o jogo. Que perdia? Uns contos - uma ninharia! A questão, porém, é que Pacheco jogava com seis cartas. A primeira vez que Coleoni deu com isso, pareceu-lhe simples distração do distinto jornalista e famoso advogado. Um homem honesto não ia fazer aquilo! E na segunda, seria também? E na terceira?

      Não era possível tanta distração. Adquiriu a certeza da trampolinagem, calou-se, conteve-se com uma dignidade não esperada em um antigo quitandeiro, e esperou. Quando vieram a jogar outra vez e o passe foi posto em prática, Vicente acendeu o charuto e observou com a maior naturalidade deste mundo:

      — Os senhores sabem que há agora, na Europa, um novo sistema de jogar o poker?

      — Qual é? perguntou alguém.

      — A diferença é pequena: joga-se com seis cartas, isto é, um dos parceiros, somente.

      Pacheco deu-se por desentendido, continuou a jogar e a ganhar, despediu-se à meia-noite cheio de delicadeza, fez alguns comentários sobre a partida e não voltou mais.

      Conforme o seu velho hábito, Coleoni lia de manhã os jornais, com o vagar e a lentidão de homem pouco habituado à leitura, quando se lhe deparou o requerimento do seu compadre do arsenal.

      Ele não compreendeu bem o requerimento, mas os jornais faziam troça, caíam tão a fundo sobre a coisa, que imaginou o seu antigo benfeitor enleado numa meada criminosa, tendo praticado, por inadvertência, alguma falta grave,

      Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda tinha, mas daí quem sabe? Na última vez que o visitou ele não veio com aqueles modos estranhos? Podia ser uma pilhéria...

      Apesar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu obscuro compadre. Havia nele não só a gratidão de camponês que recebeu um grande benefício, como um duplo respeito pelo major, oriundo da sua qualidade de funcionário e de sábio.

      Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele sagrado respeito dos camponeses pelos homens que recebem a investidura do Estado; e, como, apesar dos bastos anos de Brasil, ainda não sabia juntar o saber aos títulos, tinha em grande consideração a erudição do compadre.

      Não é, pois, de estranhar que ele visse com mágoa o nome de Quaresma envolvido em fatos que os jornais reprovavam. Leu de novo o requerimento, mas não entendeu o que ele queria dizer. Chamou a filha.

      — Olga!

      Ele pronunciava o nome da filha quase sem sotaque; mas, quando falava português, punha nas palavras uma rouquidão singular, e salpicava as frases de exclamações e pequenas expressões italianas.

      — Olga, que quer dizer isto? Non capisco...

      A moça sentou-se a um cadeira próxima e leu no jornal, o requerimento e os comentários.

      — Che! Então?

      — O padrinho quer substituir o português pela língua tupi, entende o senhor?

      — Como?

      — Hoje, nós não falamos português? Pois bem: ele quer que daqui em diante falemos tupi.

      — Tutti?

      — Todos os brasileiros, todos.

      — Ma che coisa! Não é possível?

      — Pode ser. Os tcheques têm uma língua própria e foram obrigados a falar alemão, depois de conquistados pelos austríacos; os lorenos, franceses...

      — Per la madonna! Alemão é língua, agora esse acujelê, ecco!

      — Acujelê é da África, papai; tupi é daqui.

      — Per Bacco! É o mesmo... Está doido!

      — Mas não há loucura alguma, papai.

      — Como? Então é coisa de um homem bene?

      — De juízo, talvez não seja; mas de doido, também não.

      — Non capisco.

      — É uma ideia, meu pai, é um plano, talvez à primeira vista absurdo, fora dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...

      Por mais que quisesse, ela não podia julgar o ato do padrinho sob o critério de seu pai. Neste, falava o bom senso e, nela, o amor às grandes coisas, aos arrojos e cometimentos ousados. Lembrou-se de que Quaresma lhe falara em emancipação e, se houve no fundo de si um sentimento que não fosse de admiração pelo atrevimento do major, não foi decerto o de reprovação ou lástima; foi de piedade simpática por ver mal compreendido o ato daquele homem que ela conhecia há tantos anos, seguindo o seu sonho, isolado, obscuro e tenaz.

      — Isto vai causar-lhe transtorno, observou Coleoni.

      E ele tinha razão. A sentença do arquivista foi vencedora nas discussões dos corredores e a suspeita de que Quaresma estivesse doido foi tomando foros de certeza. Em princípio, o subsecretário suportou bem a tempestade; mas tendo adivinhado que o supunham insciente no tupi, irritou-se, encheu-se de uma raiva surda, que se continha dificilmente. Como eram cegos! Ele que há trinta anos estudava o Brasil minuciosamente, ele que em virtude desses estudos, fora obrigado a aprender o rebarbativo alemão, não saber tupi, a língua brasileira, a única que o era - que suspeita miserável!

      Que o julgassem doido - vá! Mas que desconfiassem da sinceridade de suas afirmações, não! E ele pensava, procurava meios de se reabilitar, caía em distrações, mesmo escrevendo e fazendo a tarefa quotidiana. Vivia dividido em dois: uma parte nas obrigações de todo dia, e a outra, na preocupação de provar que sabia o tupi.

      O secretário veio a faltar um dia e o major lhe ficou fazendo as vezes. O expediente fora grande e ele mesmo redigira e copiara uma parte. Tinha começado a passar a limpo um ofício sobre coisas de Mato Grosso, onde se falava em Aquidauana e Ponta Porã, quando o Carmo disse lá do fundo da sala, com acento escarninho:

      — Homero, isto de saber é uma coisa, dizer é outra.

      Quaresma nem levantou os olhos do papel. Fosse pelas palavras em tupi que se encontravam na minuta, fosse pela alusão do funcionário Carmo, o certo é que ele insensivelmente foi traduzindo a peça oficial para o idioma indígena.

      Ao acabar, deu com a distração, mas logo vieram outros empregados com o trabalho que fizeram, para que ele examinasse. Novas preocupações afastaram a primeira, esqueceu-se e o ofício em tupi seguiu com os companheiros. O diretor não reparou, assinou e o tupinambá foi dar ao ministério.

      Não se imagina o rebuliço que tal coisa foi causar lá. Que língua era? Consultou-se o doutor Rocha, o homem mais hábil da secretaria, a respeito do assunto. O funcionário limpou o pince-nez, agarrou o papel, voltou-o de trás para diante, pô-lo de pernas para o ar e concluiu que era grego, por causa do "yy".

      O doutor Rocha tinha na secretaria a fama de sábio, porque era bacharel em direito e não dizia coisa alguma.

      — Mas, indagou o chefe, oficialmente as autoridades se podem comunicar em línguas estrangeiras? Creio que há um aviso de 84... Veja, Senhor doutor Rocha...

      Consultaram-se