Saša Robnik

Justiça Executada


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não posso vê-lo, mesmo quando ele tenta chamar minha atenção.

      Enquanto eu corto a carne com uma faca grande e afiada, um momento de descuido é o suficiente para fazer meu dedo sangrar. Eu xingo e coloco o dedo sob a água fria da torneira. Um filete de sangue fica preso à faca.

      Não houve água naquela noite para lavar o sangue. A poça de sangue estava na cozinha, e na poça estavam eles. Todos eles. Eu balanço minha cabeça para dissipar esses pensamentos, coloco um curativo em volta do meu dedo, sirvo outra dose e volto a cortar a carne. Cada corte me lembra das feridas que vi e, perturbado, causei.

      Azra. Mau. Ele.

      Termino minha bebida e sirvo outra.

      Nunca estive no poço, apesar dos inúmeros apelos que fiz ao meu pai. Ele previu o segredo da Azra e por isso não me levou lá, agora sei disso. Os mineiros também podiam sentir isso e eu queria dar uma olhada no poço depois da visita deles e da curta conversa à mesa.

      E agora eu bebo da garrafa.

      Maldito Fiat. De tantas oficinas na Sérvia, ele escolheu minha garagem. Azra o trouxe para me lembrar. Depois de mais um gole, coloco a carne no forno e levo a travessa de volta para o quarto. A televisão transmite o programa de ano novo, como naquele dia. Cerimonial e pomposo.

      Em vez de apresentadores de TV cafonas e cantoras tradicionais seminuas, vejo os amigos de papai à mesa, mamãe na cozinha e minha irmãzinha no balanço. Em outros canais, as mesmas imagens de minhas memórias se misturam com os programas de ano novo. Me levanto e olho a carne, ela não vai ficar pronta por um tempo. Eu quero comer, ficar bêbado, deitar e mergulhar no esquecimento. Antes da meia noite.

      Dos apartamentos próximos, ouço risos e música. Em todo o meu redor, e eu, como que amaldiçoado, fico sozinho com uma garrafa de licor, meus demônios e memórias horríveis daquela noite, então tomo outro gole e desfruto do líquido que alivia minha garganta e aquece minha barriga.

      Uma sombra se move na minha frente. Ele.

      Eu o vejo entrar no corredor com a cabeça baixa.

      - Indo para onde, pai? Você viu seu Fiat hoje? - pergunto zombeteiramente.

      Ele fica parado na porta. Eu tomo outro gole e continuo:

      - Ainda tem o adesivo embaixo do rádio que você comprou para mim na loja da esquina.

      Ele não se move e começa a mordiscar as unhas.

      Os primeiros acordes soam na TV: "Love me tender", de Elvis Presley.

      Mais uma vez a calamidade segue seu caminho, não pode ser coincidência, houveram muitas delas hoje. Essa música estava tocando naquela vez, naquela véspera de ano novo em que papai voltava do trabalho, do poço K-14, de Azra.

      De repente, tudo fica claro para mim, talvez por causa da bebida ou talvez devido ao seu comportamento incomum, porém as nuvens de terror deixam minha alma e desaparecem para sempre.

      A culpa não foi dele. Eu sabia disso o tempo todo, estava em meu subconsciente, mas eu nunca aceitei. Eu precisava de sua culpa como o ar que respiro para justificar a minha.

      Elvis continua cantando, me levando de volta àquela noite.

      Mamãe faz um bolo e canta junto com Elvis, minha irmã pula em volta da mesa e eu sento na sala lendo quadrinhos. Nunca gostei do Elvis e é por isso que não presto atenção à TV. O piscar das luzes na árvore de Natal que papai e eu montamos e decoramos me entedia.

      De repente mamãe grita da cozinha para eu pegar uma faca grande na despensa, está na bandeja com os outros bolos. Titio adora o bolo da mamãe, ela fez especialmente para ele. Este ano, celebramos o Ano Novo juntos.

      Fingi não ouvir, por causa de Elvis e sua canção nojenta, que contagiou as mulheres da casa. Meu pai sempre dizia - quem entende, filho, elas são mulheres - e ele ria, mas minha mãe franzia a testa e respondia com raiva e com palavras desagradáveis.

      Mamãe chama novamente e pede a faca. Preguiçosamente, saio do sofá, caminho pelo corredor em direção à despensa, abro a porta e encontro a lata na prateleira e a faca dentro dela. A porta da frente se abre. Papai passa por mim, não me vê e deixa uma nuvem fedorenta de carvão e poeira. Eu pego a faca.

      Ele não foi ao banheiro para se lavar, como sempre faz quando chega do trabalho, ao invés disso foi direto para a cozinha. Ele nem mesmo tinha os presentes prometidos com ele. Tenho certeza de que ele os deixou no Fiat. Agora a mãe vai repreendê-lo por entrar na cozinha com roupas sujas.

      Eu o sigo e ouço mamãe:

      - Vá se lavar, por que você está entrando assim?

      O pai não responde. Ela continua:

      - Você está bêbado? Pelo amor de Deus, o tio está prestes a chegar, e você...

      Ela não terminou a frase. Papai agarra o cabelo dela e esmaga o crânio dela contra a mesa. Sua expressão é fria como pedra e seus olhos negros como o carvão que ele estava cavando.

      Minha irmã começa a gritar. Elvis canta sobre ternura e amor.

      Horrorizado, não saio da porta da cozinha e não consigo acreditar nos meus próprios olhos, como se visse a cena diante de mim em um sonho. Papai continua, a cabeça da mãe está ensanguentada, e quando ele a puxa e a esmaga, vejo que o rosto dela não está mais lá. Ele desapareceu na poça de sangue sobre a mesa. Minha irmã continua a gritar, cobrindo os olhos.

      Ele larga a mãe, que desaba como um trapo do fogão, e se vira para minha irmã. Finalmente me recomponho e pego força nas pernas, ando até ele pela cozinha e grito: "Por favor, pai, pare, por favor, pare!"

      Repito isso, aparentemente inúmeras vezes, mas papai não me ouve. Ele agarra minha irmã, levanta-a sobre a cabeça e a joga no chão da cozinha com todas as suas forças.

      O horror está permanentemente gravado em minha consciência.

      Minha irmã está caída no chão como uma de suas bonecas. Seus olhos estão vidrados, parece que a vida saiu dela. Sangue escorre de seus ouvidos. Papai se abaixa e bate nela com o punho. Lentamente, ele levanta o braço e a golpeia novamente.

      Ele está de costas para mim, sinto o peso da faca em minha mão, minhas pernas começam a se mover e eu cravo a lâmina em suas costas largas. Ele não sente a picada, continua batendo em minha irmã sem se importar comigo ou com a ferida que eu lhe causei. Eu o esfaqueio uma e outra vez, mas ele não para de agredir a garota indefesa cuja vida já havia se esvaído. Por fim, ele cai no chão de linóleo, ao lado do pequeno corpo, morto.

      As mãos de titio me agarram, minha tia grita e Elvis termina sua música.

      Outro grande gole da garrafa desce pela minha garganta enquanto as lágrimas escorrem pelo meu rosto. Não me lembro do rosto da minha mãe, nem do da minha irmã, mas me lembro de cada momento daquela noite enquanto Elvis cantava aquela mesma música.

      Eu enxugo as lágrimas que não enxuguei em décadas. As últimas caíram enquanto eu implorava a meu pai para parar. Morar em um orfanato as afastou para sempre.

      Até agora.

      Ele em seu casaco verde, calça branca e boné na cabeça, está na soleira da porta, parado como uma lápide. Ele não move as mãos nem sussurra. Pela primeira vez, eu o vejo assim, imóvel. Como se ele pudesse ler meus pensamentos.

      - Pai... - eu chamo.

      Ele lentamente vira a cabeça para me encarar e finalmente, depois de todos esses anos, vejo seus olhos. Não estão pretos como naquela noite, mas castanhos e calorosos, como sempre foram. Olhamos um para o outro por alguns momentos, momentos que parecem tão longos quanto os anos que passei sem minha mãe, meu pai e minha irmã.

      - Pai, eu te perdoo. Eu te perdoo de todo meu coração. Todos nós te perdoamos. Por favor, me perdoe também.

      Lágrimas escorrem por seu rosto. Ele se aproxima de mim, abre os braços e me oferece um abraço.

      Eu