final dos gentios, dos infieis, dos hereticos e até a reprovação final e eterna d'um grandissimo numero de catholicos; crê n'isto como no peccado original, como na hereditariedade do crime e do castigo, bem como na graça da salvação – coisas correlativas e de todo o ponto inseparaveis. Adora em silencio todas estas apparentes iniquidades, convicta de que ellas são sómente apparentes, e que um dia virá em que os proprios gentios hão de confessar que Deus fez bem amaldiçoando-os: tão profundamente justo, equitativo e rasoavel é na essencia aquillo que exteriormente tão pouco é.
Não ha pois duvidar que milhões de milhões de creaturas humanas estão no inferno. As almas despenham-se ahi de todos os lados, densas e rapidas como a chuva, chuva que dura ha mais de seis mil annos, e não acabará nunca. Todos nós temos no inferno uma immensa familia: todos os nossos antepassados pagãos, durante quatro mil annos, e Deus sabe quantos avós christãos!
Os parentes e amigos de quem nos apartamos a chorar, o que fazem é ir adiante de nós; os netos d'elles e os nossos, pela maior parte, lá vão ter comnosco, e para tão horrivel fim é que nós nos reproduzimos.
IX
Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com especialidade a eternidade das penas
Todos estes dogmas estão ligados; porém, quando surge uma duvida, não basta um para demonstrar o outro. Próvem-nos que Satanaz foi expulso do céo, e o homem do Eden; e, quando o tiverem provado, nem por isso lhes cabe o direito de concluir que Deus nunca perdoará a Satanaz nem aos homens. Um castigo que tira aos pacientes a esperança, e ao divino juiz a piedade, é mais incomprehensivel ainda que a fragilidade dos anjos: por consequencia, um tal castigo carece de ser justificado por pessoas eguaes, senão melhores. Estes antigos mysterios não derivam um do outro naturalmente; e, seja qual for o castigo que Deus reserve em sua justiça ás prevaricações das creaturas livres, é certo que nós o soffreriamos, ainda que Satanaz e Adão não tivessem peccado. A principal questão é saber se este castigo será eterno, e a tal respeito a corrupção original, a reversibilidade das culpas, o poder do tentador augmentam nossas duvidas em vez de diminuil-as.
O que ahi ha para nós não são provas, são objecções. O inferno poderá ainda sem isso não satisfazer nossa razão; mas não a offenderá tanto. É urgente, pois, provar que elle existe.
Prova-se pela revelação, isto é, pelas escripturas santas e pela auctoridade da Egreja, interprete infallivel d'ellas. Porém revelação biblica e infalibilidade de Egreja são já de si outros dogmas a favor dos quaes se escrevem todos os dias grossos volumes; e seria desviar-me grandemente do meu assumpto suscitando aqui similhante discussão. O pouco que a tal respeito hei de dizer vem no appendice que está no fim d'esta obra, sendo tanto para o leitor como para mim grande a pressa que temos de sahir d'este labyrintho de mysterios. Investigo provas d'outra ordem, mais especiaes, mais directas, mais apontadas ao bom senso, ao coração, á intelligencia, e que se prestam facilmente a ser entendidas e livremente discutidas. Se taes provas não existissem, não emprehenderia eu similhante trabalho; mas sustenta-se que existem, e em todas as apologias são invocadas como auxiliares das provas sobrenaturaes, e do ensinamento da Egreja, argumentos puramente philosophicos, dos quaes parece que a fé mesmamente está carecida. Dir-se-hia de vontade a respeito do inferno, o que Voltaire disse de Deus: que se elle não existisse, mister seria invental-o. Pois que podemos em verdade provar a existencia de Deus pela necessidade moral d'esta crença, pelo mesmo theor se intenta provar a existencia do inferno perpetuo: intenta-se fazer d'isto uma necessidade moral tão clara e evidente, quanto é evidente e clara a necessidade moral da crença em Deus, e é usual fundamentar tal raciocinio sobre o testemunho de todos os povos, que tanto importa a tradição chamada universal.
A mim me basta a primeira prova; d'ella pende a meu vêr a questão capital. Se o inferno, ou sómente a idêa do inferno é moralmente util, existe o inferno, é necessario, e é divino. Porém, como quer que a evidencia d'esta utilidade não seja dogma, assiste-nos o direito de examinar com plena liberdade. Tal é a tarefa que me impuz. A tradição universal de que tratarei depois, é apenas a primeira face do problema.
PARTE PRIMEIRA
CAPITULO PRIMEIRO
TRADIÇÕES
I
A tradição universal é a prova do inferno?
Quando nos querem fazer comprehender a necessidade da revelação christã, esforçam-se em requintar phrases aviltantes, para bem caracterisar o estado do mundo sob os reinados de Augusto e Tiberio.
Não peço que se suavisem as pinturas. Todavia, se se tracta de nos incutir algum antigo dogma hebraico tenebrosissimo, repellentissimo, tal como o peccado original, a malicia dos diabos, o eternal inferno, então é vêr como esse genero humano tão vilescido se transfigura subitamente em oraculo. Claro é que a moral se lhe varrêra de todo; mas a theologia ficou. Eil-os a cavar no lodaçal das superstições orientaes, as mais putridas de quantas ahi houve, e querem entrever n'ellas uns certos vestigios de lá se haver conhecido Adão e Noé. Se se trata simplesmente do inferno, isso então acha-se em toda a parte. Um paria vagabundo, um pagão abjecto, um negro, um hottentote tremente em face d'um fetiche, eis as testemunhas, os consultados, os doutores. É mais que certo que taes miseraveis haviam perdido as noções todas do bem; dormiam com as servas e até com as irmãs; vendiam na feira as filhas e ás vezes as mães; profanavam os hospedes; eram ladrões, eram antropophagos; adoravam pedras, serpentes, sapos, e, peor que tudo, homens, facinoras ensanguentados; mas criam no inferno. Clarão de consciencia não lampejava n'elles só um; não estremavam raia entre virtude e vicio; e, posto que taes distincções lhes houvessem sido reveladas, tinham-nas esquecido. Vêde, porém, o prodigio: quanto ahi havia incomprehensivel para nós e ainda mais para elles; tudo que transcende a alçada da experiencia; tudo quanto a simples razão não póde revelar – tudo, em fim, que, pelo conseguinte, mais facilmente se desluz da memoria, oh! tudo isso lhes ficou na lembrança!
Que argumento a pró do inferno!
Quem ousa impugnar verdade tão de fundamento provada? Cafres, Papus, Saabs, Bushmans creram no inferno! Patagões, Muskogis, Algonquinos, Chipperrais, Sioux creram no inferno! Hunos, Alanos, Ostrogodos, Gepidas, Vandalos creram no inferno! Tambem creram n'isso Cananeos, Philisteos, Ninivitas e Babylonios! Sodoma e Gomorra tambem! Sardanapalo, Balthazar, Herodiada, Cleopatra, Nero, Attila, Gengiskhão, Tamerlão creram tambem no inferno! Querem prova mais concludente?
Eu não sei se semelhante demonstração do inferno é bem feita para edificar uma assemblêa de fieis; receio muito que os incredulos se riam. Quer-me parecer que, se tentassem insinuar-nos reverencia a tal dogma, deveriam contentar-se com dizer-nos que aquellas raças degeneradas, aquellas nações estupidas, aquellas hordas faccinoras, aquelles sacerdotes embaidores, aquelles reis devassos, em fim, todos esses selvagens e monstros, nem criam na eternidade das penas, nem d'isso tinham vislumbres. Tal argumento, se fundado fosse, figurar-se-hia melhor que nenhum. Presumir-se-hia que esses homens, se tivessem á mão e perante os olhos barreira tal, não se infamariam tanto. Mas, da laia que elles são, darem-no'l-os como crentes no inferno, é mandar-nos descrer. Horrorisa-nos a immortalidade d'elles. Vão lá trazer taes arbitros para uma questão de altissimo interesse moral! Dizeis que elles creram no inferno? Oh Deus meu! é por isso mesmo talvez que elles tão mal comprehendiam a justiça, e tal vida viveram!
II
Explicação natural das tradições pagãs ácerca do inferno
Que monta recorrer a revelações miraculosas? É facilima coisa explicar naturalmente as tradições pagãs ácerca do inferno.
Este social estado que conhecemos, no qual o direito de cada um é definido por lei, e protegido por força publica, não é o primitivo estado do genero humano. No principio, a unica sociedade foi a familia, e, por extensão, a tribu. Cada homem se protegia a si, e sahia em desaffronta propria; parentes e servos bandeavam-se na pendencia, e a menor tentativa contra o direito privado espadanava ondas de sangue. N'esses remotos tempos, vingança e justiça eram uma só cousa.
Ora,