Callet Auguste

O Inferno


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ella amnistia quaes são? Os mais ultrajadores de sua authoridade, das suas leis, do seu repouso e existencia: amnistia os crimes de lesa-magestade, e contenta-se com perdoar os outros.

      Este é o espirito das legislações novas em toda a christandade, nas quaes a misericordia se abraça com a justiça.

      Inferno que nunca muda é só o theologico. É sempre o inferno da edade media, inferno de judeus e pagãos, os mesmos supplicios, os mesmos gritos, a mesma impiedade crescente, os mesmos horrores. Não querem que Deus tenha o direito de perdoar no outro mundo. Cá em baixo póde fazel-o, se lhe apraz, como qualquer rei da terra. Mas lá no seu reino não ha perdão nem amnistia! Colera infinita! Vingança perpetua! Inexoravel furor! Tal é, consoante o pintam, o Rei dos ceos.

      Ditosos os povos cujos principes se não modelam por elle!

      Quem quizer encontrar hoje imitadores do Deus terrivel dos antigos, ha de ir procural-os no novo mundo e entre as tribus negras da Africa, e nas hordas barbarescas da Asia. A sociedade christã, com maravilhoso instincto, sequestrou-se d'essas idêas de outra edade; e, com os olhos postos na cruz, prosegue e anhela realisar em suas instituições e leis um ideal menos imperfeito da soberana justiça.

      CAPITULO SEGUNDO

      A FÉ NOVA

      I

      Pater noster

      Chamamos a Deus nosso pae e nos consideramos seus filhos. Um pae condemnaria seus filhos a supplicios eternos? Que a questão seja de ingratos e desobedientes, de rebeldes e de máos, embora: Deus é Deus, e nós somos homens.

      O mais sabio ancião n'este mundo é perante o Pae celestial o que diante d'esse velho mortal, curvado ao pezo dos annos, é uma criancinha no berço. Perante o Pae do ceo somos todos crianças balbuciantes que apenas caminhamos com andadeiras. E a comparação é ainda muitissimo ambiciosa! Ha mais proporção entre o menino que balbucia e os maximos doutores theologos, do que entre os maximos doutores em theologia e o eterno Pai. Cobertos de seus circumspectos barretes, aquelles doutores tartamudêam, gaguejam, balbuciam freneticamente, não se entendem a si proprios, descambam a cada passo, e movem á compaixão, se os compararmos a Deus. Dado que elles ainda durassem e crescessem em saber, ao mesmo passo que envelhecessem, nem por isso deixariam de estar como em perpetua infancia confrontados com Aquelle que tudo sabe, porque é infinito em sabedoria, em poder e bondade. Mas, d'outra fórma, a criancinha hontem nascida podeis já affoitamente comparal-a áquelles graves doutores; é um doutor que se aleita e entra em dentição: alguns dias mais, e vêl-a-heis defender these e supplantar os professores.

      Comprehendeis, pois, que, se o velho doutor em theologia fosse pae, mettesse o filho em um carcere cheio de serpentes e ahi o deixasse para sempre? Qualquer que houvesse sido a culpa do menino, julgareis justo e discreto similhante castigo? Não vos pareceria o mestre mais louco do que o discipulo, e o pae peior que o filho? O vosso primeiro empenho não seria pôr o algoz no logar da victima? Não se levantaria toda a sociedade contra esse sabio sem coração? Nossas leis, nossos tribunaes consentil-o-hiam? Ah! castigos, sim, mas castigos que corrijam, e o perdão a final: eis o que é justiça de pae. Não entendemos outra. Ao chefe de familia não se consente poder arbitrario sobre os seus: a esposa tem direitos; tem-os o filho, o servo, protegidos pela sociedade, que para esse fim especialmente se constituiu. Se isto repugna ás antigas tradições, nem por isso é menos racional, equitativo e moral.

      Ainda assim, por mais que fizesse este doutor atroz, seria menos cruel que o Deus prégado por elle. Se a morte não viesse rapidamente arrancar-lhe a victima, o officio de algoz cançal-o-hia. É difficil de supportar, ainda mesmo a um mau pai, o aspecto das torturas que elle exercita na pobre creatura que gerou. No coração humano tudo é mudavel, tanto o amor, como, por feliz compensação, o odio. Um principe morovingiano, chamado Charmne, revoltou-se contra Clotario; Clotario fez queimar vivos seu filho, a nora e os netos; mas diz a historia que elle se arrependêra. Se tal supplicio durasse uma semana sómente, de certo elle os teria salvado. Que bom pai! Que excellente rei!

      Que amavel é este Clotario de par com o Deus que nos pintam! Este Deus quer que pensemos no inferno, mas não que se morra ahi; á imitação do algoz das prizões feudaes, deixa viver os pacientes torturando-os e disvela-se em lhes protrahir a agonia! Manda-os soffrer, ouve-os gemer durante a eternidade, e procede sua vingança, sem fechar olhos, sem tapar ouvidos, e por isso mesmo é que n'elle reconhecemos não um homem variavel, mas o que elle é, um Deus.

      Ó Deus dos antigos, Bel, Teutates, Plutão, Eolin, seja qual fôr teu nome, Deus das batalhas, Deus do gladio, Deus dos fortes, guerreiro feroz, senhor irascivel, juiz sem entranhas, Deus dos eternos rancores, tu não és o meu Deus! O Deus que adoro, o unico e verdadeiro Deus, é o melhor dos Paes; apezar das minhas culpas, não me trata como inimigo nem como escravo; conhece melhor a minha fraqueza do que eu a sua força; e, até quando me castiga, não esquece que foi elle quem me creou e que eu sou seu filho.

      II

      O purgatorio

      É o purgatorio o logar incognito em que os mortos esperam, soffrendo, o perdão das culpas commettidas na terra. Ha ahi o chorar e o padecer; mas não se amaldiçôa Deus: bemdiz-se. Os soffrimentos ahi supportados são salutares porque se comprehende a justiça d'elles; e corrigem porque a esperança não é anniquillada.

      Se tal logar existe, de que serve o inferno?

      Deixar dizer que a eternidade é que apavora e refrêa o peccador. O peccador não sabe o que seja a eternidade; porque é impossivel absolutamente formar-se uma clara idêa do que seja isso. Se recuamos perante nós um pouco que seja as balisas do tempo, a nossa imaginação e razão se perdem; e cahimos nas prezas das mesmas angustias que sentiriamos, se vissemos a verdadeira eternidade.

      Para que o homem se aterre lhe basta imaginar o soffrimento de que é capaz a sua natural sensibilidade, e qual o podem comprehender as faculdades do seu entendimento. Para que iremos mais longe? Não é bastante ameaçar os maus com castigos proporcionados ás suas faltas, durante um espaço de tempo desconhecido ou incalculavel n'este mundo? O que fôr mais do que isto é inintelligivel. Para lá d'estes limites, a ameaça nada importa; a alma está refarta de justiça, oppressa de terror, extenuada de padecer, dobra-se, cáe, aniquilla-se, adora, supplica perdão, não póde comprehender senão a piedade, está surda e insensivel a tudo o mais. O remate da justiça para nós é o perdão; e, se n'essas extremas alturas onde a imaginação póde chegar, e onde o peccado roja gemente, se em vez de perdão, nos mostraes o odio ainda flamejante, lá vai tudo: o terror tocou o apogeu; turva-se a razão, idêa de justiça e de bondade tudo se desfaz; a alma, que cahira crente, levanta-se atheista.

      Se o tal inferno existe, no outro mundo coisa comprehensivel ha uma só; é o blasfemar dos condemnados.

      Mas se tal inferno existe, de que serve o purgatorio? Pois os protestantes não o aboliram discretamente? Para os que podem crêr em tal inferno, que é cem mil annos de purgatorio? Este acaba e o inferno não; seculos e milhões de seculos de penitencia não se contam, esquecem-se. Em vista d'este sinistro inferno em que a misericordia é desconhecida, inutil o soffrimento, e a justiça um enigma, o purgatorio é um paraizo. Quem nos dera a certeza de lá ir! que os castigos ahi soffridos, por mais demorados e rigorosos que sejam, não ha temel-os: desejam-se. Por maneira que o mais terrivel castigo que imaginar se póde, o mais equitativo e rasoavel, deixa de impressionar as almas pervertidas pelo espectaculo d'uma punição sem siso nem justiça apparentes.

      As pobres almas aterradas, aturdidas, estupefactas são impellidas involuntariamente a offender a Deus de dois modos; primeiro temendo-lhe a vingança, segundo não lhe temendo a justiça. A idêa dos castigos inefficazes e dôres infructiferas, por muito monstruosa, odiosa e falsa que seja, se humanamente a consideramos, torna inutil a idêa dos castigos poderosos e dôres salutares, por muito bella, clara, natural e divina que ella seja.

      III

      Necessidade do purgatorio

      Quem quer que sejaes, senhor ou servo, rico ou pobre, esposo ou pai, viuva ou noiva, não negueis as expiações da vida futura. Não conheceis maus em prosperidade, cercados de respeitos, inaccessiveis á lei, e que se deitam