merecimentos que eu não tenho aos seus olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu primo Baltasar, se o tivesse em conta de seu amigo intimo?
— Nessa conta é que eu o não posso já ter... - respondeu Teresa, sorrindo, e pausando, como ele, as sílabas das palavras.
— Pois nem para amigo me quer?!
— O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em diante meu inimigo.
— Pelo contrário... - tornou ele com mal rebuçada ironia - muito pelo contrário... Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir casada com algum miserável indigno de si.
— Casada!... - interrompeu ela. Mas Baltasar cortou-lhe logo a réplica deste modo:
— Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão de aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerados nas cadeias de Coimbra...
Claro está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa. Seu tio, naturalmente, lhe comunicara a criancice da prima, talvez antes de destinar-lhe a esposa.
Ouvira Teresa o tom sarcástico daquelas palavras, e erguera-se respondendo com altivez:
— Não tem mais que me diga, primo Baltasar?
— Tenho, prima; queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide agora que está falando com o namorado infeliz: convença-se de que fala com o seu mais próximo parente, mais sincero amigo, e mais decidido guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade de seu pai, uma ou outra vez conversava da janela com o filho do corregedor. Não dei valor ao sucesso, e tomei-o como brincadeira própria da sua idade. Como eu freqüentasse o meu último ano em Coimbra, há dois anos, conheci de sobra Simão Botelho. Quando voltei, e me contaram a sua afeição ao acadêmico, pasmei da boa fé da priminha; depois entendi que a sua mesma inocência devia ser o seu anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de a ver ainda fascinada pela perversidade do seu vizinho Não se recorda de ter visto Simão Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra?! Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor de feiras? Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando à canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião de nossos país? A prima ignoraria isto porventura?
— Ignorava parte disso e não me aflige a sabê-lo. Desde que conheci Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua família, nem ouço falar mal dele.
— E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de costume?
— Não sei, nem penso nisso - replicou com enfado Tereza.
— Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras: eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao valentão que a vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de Albuquerque.
— Então o primo quer me governar!? - atalhou ela com desabrida irritação.
— Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Teresa.
Baltasar Coutinho foi dali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do diálogo. Tadeu, atônito da coragem da filha e ferido no coração e direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto a espancá-la. Reteve-o Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicaria muito a crise, sendo coisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua ira, e meditou. Horas depois, chamou sua filha, mandou-a sentar ao pé de si, em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse que era sua vontade casá-la com o primo; porém, que ele já sabia que a vontade de sua filha não era essa. Ajuntou que a não violentaria; mas também não consentiria que ela, sovando aos pés o pundonor de seu pai, se desse de coração ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvaIar na sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha, que ele já considerava morta. Terminou perguntando a Teresa se ela duvidava entrar num convento, e a esperar que seu pai morresse, para depois ser desgraçada à sua vontade.
Teresa respondeu, chorando, que entraria num convento, se essa era a vontade de seu pai; porém, que se não privasse ele de a ter em sua companhia nem a privasse a ela dos seus afetos, por medo de que sua filha praticasse alguma ação indigna, ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer.
Prometeu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para seu pai.
Tadeu ouviu-a, e não lhe replicou.
IV
O coração de Teresa estava mentindo. Vão pedir sinceridade ao coração!
Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de Albuquerque. E mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. Diz boa gente que não, e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de astúcia ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta de que rezam os meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta crer em sua distinção, a celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça.
Da carta que ela escreveu a Simão Botelho, contando as cenas descritas, a crítica deduz que a menina de Viseu contemporizava com o pai, pondo a mira no futuro, sem passar pelo dissabor do convento, nem romper com o velho em manifesta desobediência. Na narrativa que fez ao acadêmico omitiu ela as ameaças do primo Baltasar, cláusula que. a ser transmitida, arrebataria de Coimbra o moço, em quem sobejavam brios e bravura para mantê-los.
Mas não é esta ainda a carta que surpreendeu Simão Botelho.
Parecia bonançoso o céu de Teresa. Seu pai não falava em claustro nem em casamento. Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro-d'Aire. A tranqüila menina dava semanalmente estas boas novas a Simão, que, aliando às venturas do coração as riquezas do espírito, estudava incessantemente, e desvelava as noites arquitetando o seu edifício de futura glória.
Ao romper d'alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada para ir com seu pai à primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a menina, assustada, e encontrou o velho na antecâmara a recebê-la com muito agrado, perguntando-lhe se ela se erguia de bons humores para dar ao autor de seus dias um resto de velhice feliz. O silêncio de Teresa era interrogador.
— Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha, que a violência dum pai é sempre amor. Amor tem sido a minha condescendência e brandura para contigo. Outro teria subjugado a tua desobediência com maus tratos, com os rigores do convento, e talvez com o desfalque do teu grande patrimônio. Eu, não. Esperei que o tempo te aclarasse o juízo, e felicito-me de te julgar desassombrada do diabólico prestígio do maldito que acordou o teu inocente coração. Não te consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflexão fizesse mal ao zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai, e agradecer-lhe a prudência com que ele respeitou o teu gênio, velando sempre a honra de te encontrar digna do seu amor.
Teresa não desfitou os olhos do pai; mas tão abstraída estava, que escassamente lhe ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas.
— Não me respondes, Teresa?! - tornou Tadeu, tomando-lhe cariciosamente as mãos.
— Que hei de eu responder-lhe, meu pai? - balbuciou ela.