anos de vida libertina e dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na quietação. Os anos de Teresa eram pela primeira vez festejados com estrondo. A morgada viu então o que era o minueto da corte e certos jogos de prendas com que os intervalos naqueles tempos se aligeiravam em delícias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral.
Mas, de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos seus hóspedes. Desde que soaram as dez horas daquela noite, a rainha da festa parecia tão alienada das finezas com que as senhoras e homens à competência a lisonjeavam, que Baltasar Coutinho deu tento do desassossego de sua prima, e teve a modéstia de imaginar que ela se ofendera da indiferença dele, Generoso até ao perdão, o morgado de Castro-d'Aire, compondo o rosto com gesto grave e melanc6lico, dirigiu-se a Teresa, e pediu-lhe desculpa da frieza que ele disse ser como a das montanhas, que têm vulcões por dentro e neve por fora. Teresa teve a sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo, e chamou para junto dela uma menina, para evitar que a montanha se fendesse em vulcões. Pouco depois ergueu-se e saiu da sala.
Eram dez horas e três quartos. Teresa correra ao fundo do quintal, abrira a porta, e, como não visse alguém, tornou de corrida para a sala. No momento, porém, de subir a escada que ligava o jardim à casa, Baltasar Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala, chegou a uma das janelas sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via. Retirou-se, e entrou com Teresa na sala, ao mesmo tempo, por diversa porta. Decorridos alguns minutos, a menina saiu outra vez e o primo também. Teresa ouviu, a distância, o estrépito dum cavalo, quando passou ao patamar da escada. Baltasar também o ouviu, e notou que sua prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido, levava uma capa ou chale que a envolvia toda. O de Castro-d'Aire fez pé atrás para não ser visto. Teresa, porém, num relance de olhar temeroso, ainda vira um vulto retirar-se. Teve medo, e retrocedeu a largar a capa, e entrou na sala, ofegante de cansaço e pálida de medo.
— Que tens, minha filha? - disse-lhe o pai - Já duas vezes saíste da sala, e vens tão alvoraçada! Tens algum incômodo, Teresa?
— Tenho uma dor: preciso de ir respirar de vez em quando... Nada é, meu pai.
Tadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dor; só o não disse a seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que ele tinha saído.
Também Teresa dera pela ausência do primo, e fingiu que o ia procurar, resolução de que o velho gostou muito. Desceu ela ao jardim, correu à porta onde a esperava Simão, abriu-a, e, com a voz cortada pela ansiedade, apenas disse:
— Vai-te embora; vem amanhã às mesmas horas... Vai, vai!
Simão, quando isto ouvia, os olhos fitos num vulto que se aproximava dele, rente com o muro do quintal. O arreeiro, que primeiro o vira, dera um sinal, e entalara as rédeas do cavalo entre umas pedras, para ficar desembaraçado, se o estudante se não pudesse haver com o inimigo.
Simão Botelho não se moveu do local, e Baltasar Coutinho parou na distância de seis passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio caminho do patrão, quando este lhe disse que não se aproximasse. E, caminhando para o vulto, aperrou duas pistolas, e disse-lhe:
— Isto aqui não é caminho. Que quer?
O fidalgo não respondeu.
— Parece-me que lhe abro a boca com uma bala - tornou Simão.
— Que lhe importa o senhor quem está?! - disse Baltasar - Se eu tiver um segredo, como o senhor parece que tem o seu nestes sítios, sou obrigado a confessar-lho!?
Simão refletiu, e replicou.
— Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família, e uma só mulher.
— Estão nessa casa mais de quarenta mulheres esta noite - redargüiu o primo de Teresa. - Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar outra.
— Quem é o senhor? - tornou com arrogância o filho do corregedor.
— Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhecer. Fiquemos cada um com o nosso incógnito. Boas noites.
Baltasar Coutinho retrocedeu, dizendo entre si:
— "Que partido tem uma espada contra dois homens e duas pistolas?"
Simão Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro ferrador.
O sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar levemente alteração de ânimo. Viu que Teresa o observava de revés, e soube dissimular-se de modo que a sossegou. A pobre menina, ansiosa por se ver sozinha, viu com prazer erguer-se para sair a primeira família, que deu rebate às outras, menos ao de Castro-d'Aire e suas irmãs, que ficaram hospedados em casa de seu tio, com tenção de se demorarem oito dias em Viseu.
Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história dos seus terrores, e pedindo-lhe perdão de o ela não ter advertido do baile, por ficar doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Isto espantou o acadêmico. A seu ver, o vulto era Baltasar Coutinho, e o pai de Teresa devia ser avisado naquela mesma noite.
Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado; receando, porém, assustar Teresa e privar-se da entrevista, escreveu nova carta em que não transluzia medo de ser atacado, nem sequer receio de marear-lhe a fama. Quis parecer a Simão Botelho que este era o digno porte de um amante corajoso.
Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temerária ida, se Baltasar Coutinho era aquele homem que reservara para melhor relance a vingança da provocação insolente. Mas de si para si tinha ele que pensar em que tal era mais cobardia que prudência.
O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto belo e triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava a contemplá-lo, e perguntou-lhe a causa daquele olhar melancólico com que ela o fitava. Mariana corou, abriu um sorriso triste, e respondeu:
— Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria. Alguma desgraça está para lhe suceder...
— A menina não dizia isso - replicou Simão - sem saber alguma coisa da minha vida.
— Alguma coisa sei... - tornou ela.
— Ouviu contar ao arreeiro?
— Não, senhor. E que meu pai conhece o paizinho de vossa senhoria, e também conhece o senhor. E há bocadinho que eu ouvi estar meu pai a dizer a meu tio, que é o arreeiro que veio com vossa senhoria, que tinha suas razões para saber que alguma desgraça lhe estava para acontecer...
— Por quê?
— Por amor duma fidalga de Viseu, que tem um primo em Castro-d'Aire.
Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que ele julgava mistério entre duas famílias, quando o mestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde o precedente diálogo se passara. A moça, como ouvisse os passos do pai, saíra lentamente por outra porta.
— Com sua licença - disse mestre João.
Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma arca.
— Ora, meu fidalgo - continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem sabe as etiquetas das mangas - há de desculpar que eu viesse assim em mangas de camisa; mas não dei com a jaqueta...
— Está muito bem, senhor João - atalhou o acadêmico.
— Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta. Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco de um couce que um macho dum almocreve deu numa égua, que estava ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe partiu rente o jarrete por aqui, salvo tal lugar.
João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fraturada a da égua, e continuou:
— Eu tinha ali à mão o martelo, e não