praias, dos clubes alternativos de Berlim às festas em iates no mediterrâneo.
– Já és um homem – comunicou o pai, quando fez vinte e um anos. – Nominalmente.
Segundo as leis do reino, com vinte e um anos, tornava-se príncipe herdeiro. A sua investidura afiançava o seu lugar e o dos seus herdeiros na linha sucessória.
Continuava a ser esse disparate da linhagem e, naquele momento, importava-se ainda menos do que quando tinha cinco anos. Naquele momento, interessava-se mais pela sua vida social e por tudo o que podia fazer com a fortuna considerável que lhe correspondia.
– Não receie, pai – replicou ele, depois da cerimónia. – Não tencionava horrorizá-lo e ainda menos agora que sou o seu herdeiro oficial.
– Já tiveste demasiadas farras… – resmungou o rei.
Ares não se incomodou em contradizê-lo. Primeiro, porque era verdade e, segundo, porque poderia engasgar-se com tanta hipocrisia. O rei Damascus fora muito famoso pelas suas farras e, ao contrário dele, estivera noivo da mãe desde que ela nascera… E era mais um motivo para que o odiasse.
– Diz isso como se fosse algo mau – replicou.
Já não brincava às estátuas à frente do pai. Já era um homem adulto. Segundo todos, era o herdeiro do reino e teria de levar tarefas a cabo em nome da coroa que usaria algum dia. Ficou junto da janela dos aposentos do pai e olhou para as colinas e para o mar azul cristalino.
Para ele, Atilia seria sempre assim. O murmúrio das ondas do mar, o cheiro delicado das flores, a extensão do mar Jónico à frente dele… Não o rei e a sua inclinação por destruir coisas e causar desassossego com a mínima provocação.
– Chegou a hora de te casares – concluiu o rei.
Ares virou-se entre gargalhadas, mas riu-se ainda mais quando viu que o pai estava sério.
– Não pensa que vou fazê-lo, pois não?
– Não tenho vontade de sofrer o suplício a que submeterias este reino e a mim.
– Mesmo assim, terá de o sofrer porque não tenciono casar-me – insistiu Ares, num tom ameaçador que era o que mais se parecia com tentar dar um murro ao seu pai… e ao seu rei.
Naquele dia, o pai partiu uma garrafa que era da família desde o século XVIII. Partiu-a um pouco à esquerda de Ares, embora ele não pestanejasse e se limitasse a olhar fixamente para ele.
No entanto, partira mais alguma coisa. Não eram os mil pedaços de vidro de um valor incalculável nem era o mau do pai, que já começava a aborrecê-lo.
Era o conjunto: Os títulos, a terra, a linhagem… Nunca significara nem a milésima parte de tudo isso para o pai. Não fora criado pelos pais, fora tutelado por uma série de empregados que o tinham levado a ver o pai de vez em quando e apenas quando tinham a certeza de que ia portar-se bem.
Não conseguia deixar de pensar que, na verdade, preferia não ser príncipe ou, se não houvesse outro remédio, preferia não ter de entregar a substituição da linhagem e todas essas tolices à geração seguinte. Não tencionava casar-se, não tinha o mínimo interesse e, além disso, opunha-se categoricamente a ter filhos.
Também não conseguia evitar pensar que o pai era um monstro precisamente por causa da linhagem e da coroa… e, sobretudo, era um monstro com o filho. Era frio com a mãe de Ares, mas era Ares que suportava as garrafas partidas e os arrebatamentos de fúria e não estava disposto a transmitir essa fúria aos seus próprios filhos.
– Não devias exasperar tanto o teu pai – comentou a mãe, anos depois, quando já tinha vinte e seis anos e voltara a ter outra conversa com o pai sobre o casamento. – Vamos ter de começar a trazer garrafas do palácio do sul.
Atilia era um conjunto de ilhas que formava um reino muito antigo no mar Jónico. A ilha do norte era onde se concentrava a atividade económica do país e, em consequência, o palácio do norte era a residência mais majestosa da família real. O palácio do sul, no extremo mais a sul do reino, era para relaxar e esquecer os assuntos de estado. Havia praias, tranquilidade e todo o desafogo de que podia precisar um homem que tinha o peso do reino às costas.
Ares não tencionava carregar esse peso, mas, mesmo assim, preferia o sul e fora lá que passara umas semanas antes de o pai o chamar.
– Não posso controlar o que o exaspera – replicou Ares, com ironia. – Se pudesse, os últimos vinte e seis anos teriam sido muito diferentes e ainda restariam muitos objetos frágeis no palácio.
A mãe teve de sorrir, como sempre, com delicadeza e tristeza. Supunha que fosse porque não podia protegê-lo do pai, não conseguia fazer com que o rei o tratasse como a tratava, com um desinteresse gélido.
– O facto de começares a pensar na próxima geração não é o pior que pode acontecer.
– Não posso.
Era uma convicção que se afiançara nele ao longo dos anos. Ares olhou com atenção para o rosto querido e gasto da mãe.
– Se és um exemplo do casamento ou do que temos de suportar para ser a rainha destas ilhas, não posso dizer que me estimule muito endossar esse prazer duvidoso a alguém.
Era verdade, mas ainda mais verdade era que Ares desfrutava da sua vida. Residia em Saracen House, um edifício palaciano dentro do complexo do palácio do norte, mas preferia a intensidade de Berlim, o bulício de Londres e a energia desenfreada de Nova Iorque.
Na verdade, preferia qualquer lugar onde o pai não estivesse.
Além disso, ainda tinha de conhecer a mulher com quem quisesse estar durante mais do que algumas noites, já para não falar de linhagens, tradições, pompa e solenidade para toda a vida. Duvidava muito que existisse uma mulher que o fizesse mudar de ideias e também não se importava muito.
– Sei como estás a olhar para mim e não sou suficientemente velha para não me lembrar das emoções da juventude e da certeza de que poderia prever as mudanças da minha vida – repreendeu-o a mãe.
Estava sentada, erguida e elegante, como sempre, na chaise-longue do seu quarto favorito do palácio, onde entrava a luz do sol para lhe dar alegria ou, pelo menos, fora o que ele sempre pensara.
– Espero que não vás contar-me com pormenores as emoções da tua juventude, sobretudo, quando achava que tinhas passado a maior parte dela num convento.
O sorriso da rainha deu a entender que havia algum segredo e isso alegrou Ares. Gostava de pensar que, na vida da mãe, havia mais do que o pai e esse casamento gélido.
– Tens de encontrar uma esposa com origens parecidas – comentou a mãe, sem se alterar. – Vais ser o rei, Ares. Seja como for o teu casamento, independentemente do que estipulem, tem de ser uma rainha sem mácula e o teu… «assunto» também tem de ser impecável. Entendes o que quero dizer?
Entendia, mas isso não queria dizer que tencionasse obedecer.
– Que tenho de adiar o casamento o máximo que possa – replicou Ares, com um sorriso. – Será um prazer obedecer.
Ares já tinha trinta e tal anos quando a mãe morrera de repente de um cancro fulminante que achara que era uma gripe. Continuava a chorá-la quando o pai o chamara ao palácio do norte alguns meses depois do enterro.
– Tens de saber que o que a tua mãe mais desejava era que te casasses – resmungou o pai, agarrando num copo de cristal como se fosse uma arma. – A descendência, a linhagem, é o teu dever mais sagrado, Ares. Já acabaram os jogos.
No entanto, a linhagem era algo de que gostava ainda menos, mesmo que pudesse parecer impossível.
A mãe deixara-lhe todos os seus documentos e os diários que escrevera desde criança estavam entre eles. Ares, durante os meses desoladores que tinham decorrido desde a morte dela, perdera-se nesses diários, pois quisera entesourar todas as lembranças que