Susana Rodríguez Lezaun

Uma bala com o meu nome


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não deve ter-lhe custado muito. O inspetor a cargo da investigação disse que são pouco menos do que uma merda. Praticamente acusou o diretor de convidar os ladrões a entrar. De facto, chegou a insinuar que podem ter contado com ajuda de dentro.

      Noah ficou em silêncio durante uns segundos eternos.

      — Se pensares bem — disse, finalmente —, isso não é assim tão desatinado e explicaria muitas coisas.

      — Não consigo acreditar que alguém do museu esteja envolvido na morte do Scott. Meu Deus… Não consigo esquecer a cara de espanto quando nos viu a sair da oficina esta tarde.

      — E falando disso… Contaste a alguém? Refiro-me à nossa pequena incursão.

      — Não, a ninguém, mas imagino que tenha de dar explicações quando descobrirem que alguém apagou vários minutos da cassete de vídeo. E, então, tudo terá acabado para mim.

      — Não sejas tão dramática. No caso hipotético de descobrirem a manipulação das gravações, coisa que duvido, bastará que te mantenhas calada. Tu não fizeste nada, nem sequer pediste ao Scott para as apagar. Fui eu, lembras-te? E ele demonstrou ser um cavalheiro e acedeu, porque compreendeu que não tinha sentido destruir a tua vida por uma tolice.

      — Não sei…

      — Onde estás? — perguntou-me, mudando de assunto.

      — Atrás do museu, no carro. Vou para casa, embora ache que não vou conseguir dormir.

      — Posso encomendar comida e acompanhar-te, parece-te bem?

      Ponderei as duas opções que se abriam à minha frente: Passar a noite sozinha, em branco, a roer as unhas ou passá-la junto de Noah, comer alguma coisa, conversar e desabafar.

      — Parece-me ótimo.

      * * *

      Estava há menos de dez minutos em casa quando o som da campainha da porta me assustou. Estava tão perdida nos meus próprios pensamentos que me esquecera de que esperava visitas.

      Abri a porta para deixar passar um Noah carregado com dois sacos que tinham um cheiro quente a especiarias, frango e legumes assados.

      — Há um restaurante asiático a duas ruas daqui que está aberto vinte e quatro horas e tem verdadeiras delícias no menu para levar.

      — Eu sei — reconheci.

      A solidão impulsiona as pessoas a fugir da cozinha. Lembro-me da minha mãe, a cantarolar à frente do fogão enquanto fazia um banquete para a sua família extensa. Eu sou filha única, mas ela tinha uma boa coleção de irmãos, sobrinhos, sobrinhos-netos, cunhados e primos que gostavam de se reunir de vez em quando. A minha mãe adorava cozinhar para os outros e, às vezes, eu participava nessa alegria, ajudando-a com os afazeres mais ingratos da elaboração do festim, como cortar batatas, depenar um pato ou saltear os legumes. Gostava de fazer parte desse regozijo, do alarido de sons, cheiros e sabores que invadia a nossa casa quando a família se reunia e a minha mãe cozinhava. Há séculos que não tenho contacto com nenhum deles.

       Talvez seja por isso que fujo do fogão como da peste. O que há mais deplorável do que sentar-me sozinha à mesa, à frente de um bife triste e de uma salada? Cozinhá-lo. De certeza que muitos solteiros acham que cozinhar para um não tem nada de mal, que é apenas uma questão de hábito. Eu não consigo habituar-me, deprime-me cozinhar, portanto, durante a semana, costumo comer na cafetaria pequena do museu e, aos fins de semana, encomendo comida para levar em qualquer um dos variados restaurantes que abundam na zona.

      Comemos sem falar demasiado. Eram quase duas da madrugada, uma hora muito estranha para jantar, mas não disse nada. Suponho que tenha pensado que Noah fez o que lhe pareceu mais adequado naquele momento. Estava nervosa e chocada e um pouco assustada também. A proximidade da morte e a certeza de que o fim da vida pode alcançar-nos como um raio no momento menos esperado encheram-me a cabeça de ideias lúgubres e lutuosas. Via várias vezes na minha mente todas aquelas pessoas a rodear o cadáver de Scott. Então, não sabia que estava ali, mas, agora, quase conseguia ver os pés lassos na erva e até o carreiro abundante de sangue que deve ter sido produzido pelos dois tiros à queima-roupa.

      Petisquei sem vontade a comida que Noah pôs na mesa da cozinha e tentei sorrir algumas vezes, mas os meus pensamentos iam a mil à hora e a minha mente não parava de pensar no que aconteceria a partir de então.

      E, depois, havia o meu comportamento dessa tarde na oficina da restauração. Esperava que Scott tivesse eliminado as imagens. Noah garantira-me que o fizera à frente dos seus olhos, mas não podia ter a certeza.

      Um calafrio de terror sacudiu-me. Noah aproximou-se de mim e abraçou-me. Foi um gesto protetor que não esperava. Não gostava de me mostrar vulnerável. Estava tão habituada a sobreviver sozinha que até me incomodava que alguém vislumbrasse a mínima fraqueza em mim.

      — Sentes-te bem? — perguntou-me.

      — Não — reconheci —, não demasiado. Não paro de pensar no Scott e no que vai acontecer a partir de agora.

      — A que te referes?

      — Não sei… Suponho que a investigação ponha a nossa rotina de pernas para o ar. De facto, nem sequer sei se devo ir trabalhar amanhã.

      — Pergunta ao teu chefe — propôs Noah, com uma lógica esmagadora. — Ele saberá se a polícia tem intenção de isolar o museu durante alguns dias ou se os empregados podem ir com normalidade, mesmo que esteja fechado ao público. Ao fim e ao cabo, a tua oficina é longe de onde aconteceu tudo.

      Assenti devagar. Ligaria a Gideon de manhã. Poderia dizer-me o que fazer. Ou melhor, apareceria no museu e esperaria pelos acontecimentos. Tudo era melhor do que ficar ali sentada a ver passar o tempo.

      Tremi novamente. Estava enjoada e tinha o estômago às voltas.

      — Acho que vou deitar-me — anunciei.

      Noah olhou para mim e levantou-se. Agarrou-me a cara e beijou-me a ponta do nariz com delicadeza.

      — Queres que fique?

      — Agradeço, mas não é necessário. É muito tarde e, amanhã, vai ser um dia difícil. Vou tentar descansar um pouco.

      — Está bem — acedeu, com um sorriso. — Terei o telemóvel à mão, se precisares de mim.

      — Obrigada — agradeci.

      Beijámo-nos à porta e foi-se embora. Não me incomodei em arrumar os restos do jantar tardio. Dirigi-me para o meu quarto, despi-me aos pés da cama e deitei-me entre os lençóis depois de verificar se o alarme do despertador estava ligado. Virei as costas à janela para ignorar a luz dos candeeiros, enrosquei-me e invoquei todas as imagens prazenteiras que habitavam na minha mente para afastar o horror que a morte trazia consigo. Não consegui.

      Não demorei demasiado a adormecer, mas sonhei com riachos de sangue que desciam velozmente por uma montanha de cadáveres, percorriam os caminhos intrincados de uma paisagem assolada, cheia de pedras e rochas escuras até onde a vista alcançava, e corriam até aos meus pés, onde o sangue parava sem chegar a tocar em mim, formando uma lagoa carmesim plácida. No meu sonho, estava sozinha, não havia nada vivo à minha volta, humano, animal ou vegetal. Completamente sozinha. Rodeada por todo aquele sangue aguado. O que aconteceria se desse um passo em frente? Afundar-me-ia e afogar-me-ia? O meu corpo encher-se-ia de sangue alheio, por dentro e por fora?

      Por sorte, o despertador arrancou-me do pesadelo antes de ir mais além. Acordei encharcada em suor, com o lençol enrolado à volta do meu corpo e uma dor de cabeça intensa. Uma forma terrível de começar o primeiro dia do resto da minha vida.

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