Susana Rodríguez Lezaun

Uma bala com o meu nome


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o carro seria visível da estrada. Com os faróis partidos, a escuridão voltava a ser a rainha do lugar.

      E estou aqui, à espera.

      Espero pela morte e suplico para que seja rápida. Já são demasiadas as feridas que enchem o meu corpo. Só quero acabar. De facto, estou tentada a soltar os ramos e a deixar-me arrastar pela corrente, mas morrer afogada parece-me uma forma horripilante de abandonar este mundo.

      Espero pela paz. Pensei que conseguiria e que, por uma vez, seria mais inteligente do que eles, mais rápida do que os meus adversários e que o troféu seria só meu. Foi a minha ansiedade ridícula de aventura, de me sentir viva pela primeira vez desde que consigo recordar, que me trouxe até aqui. Só queria uns dedos a acariciar-me a pele, uma boca a beijar-me com deleite, um homem jovem e atraente disposto a fazer tudo por mim. Queria uma alegria que me fizesse sorrir todas as manhãs, que me permitisse cruzar e descruzar as pernas devagar na espreguiçadeira de uma praia. Sinto-me imbecil. Vou morrer a sentir-me uma estúpida. Acho que não há nada pior do que isso. Morrer por uma estupidez.

      Contudo, também espero sobreviver, sair daqui, dar uma sova a Noah e correr até à primeira esquadra que encontrar para me entregar e explicar o que aconteceu desde o começo.

      1

      Gosto de me olhar ao espelho quando ainda está embaciado. Esfuma as feições e permite-me acreditar, durante uns minutos, que o tempo não passou e que, por trás do vapor, se esconde uma Zoe Bennett de vinte anos, trinta no máximo, em vez da quarentona que acabou de sair do duche. Costumo escovar o cabelo e espalhar o creme corporal antes de desembaciar o espelho. Quando o faço, descubro uma pele que começa a murchar, uns olhos enfastiados e uma boca que mal recorda como se desenha um sorriso. Sei que não estou mal para a minha idade. Esforço-me para me manter em boa forma, mas vejo perfeitamente as marcas que o tempo vai gravando em mim.

      Divorciei-me há quase quinze anos, depois de um casamento breve e aborrecido com o meu namorado da secundária. Lembro-me de estar de pé junto dele, à frente do altar, e de rogar aos gritos na minha alma para que John tivesse a coragem de responder «não» à pergunta do padre. Porém, disse «sim» e eu fiz o mesmo. Embarcámos numa convivência confusa em que, na verdade, nenhum dos dois queria estar. Não houve crianças e vivíamos numa casa arrendada, portanto, a separação foi rápida e assética. Não voltámos a ver-nos depois e a verdade é que me lembro de John em raríssimas ocasiões. Nem sequer mantive o apelido dele. É como um livro que li, que sei que li, mas que não recordo exatamente sobre o que é.

      Sou restauradora no Museu de Belas Artes de Boston, especializada em pintura renascentista. Adoro o meu trabalho. Considero-me uma humanista convencida, educada desde pequena para procurar a beleza em tudo aquilo que me rodeia. Foi por isso que escolhi esta carreira. E para apagar a fealdade e o vazio com que convivi durante os primeiros anos da minha vida, um período breve, mais até do que o meu casamento fracassado, mas que receio que tenha deixado um rasto mais profundo em mim do que eu própria imaginava.

      Gosto de pensar que sou como a neurocirurgiã de algumas das obras de arte mais valiosas do mundo. Vigio o seu estado com atenção, cuido delas com esmero e, quando adoecem, transfiro-as para a minha clínica privada, onde ponho toda a minha sabedoria e experiência ao serviço dos quadros e das telas danificados pelos elementos ou pelos seres humanos. O meu trabalho faz-me feliz e torna o resto da minha vida ainda mais miserável.

      Era sexta-feira à noite e o museu organizara uma festa em honra dos benfeitores que mantêm a instituição. Como responsável da área da restauração, a minha presença era obrigatória, como me recordou o diretor nessa mesma manhã.

      — Podes trazer um acompanhante — disse, de passagem.

      Sabe perfeitamente que não tenho namorado, portanto, não sei se se esqueceu ou se gosta de me humilhar.

      — Vou tê-lo em conta, és muito amável — repliquei, com toda a dignidade que fui capaz de reunir em tão pouco tempo. — De todos os modos, não vou ficar muito tempo. Tenho planos no sábado e não quero estar demasiado cansada.

      Era mentira, é claro, e acho que ele soube imediatamente.

      — Sabes como são estas coisas, Zoe. Tens de estar disponível para que os nossos benfeitores conversem contigo de forma calma e lhes fales do trabalho fantástico que fazemos aqui. Não podes sair meia hora depois de chegares, não és uma simples convidada. És uma anfitriã.

      Tinha os olhos fixos na minha cara enquanto falava, talvez procurando uma forma de aprofundar a sua crítica ou simplesmente observando de perto as rugas das minhas pálpebras. Em qualquer caso, limitei-me a responder com um direto «É claro, Gideon, não te preocupes», antes de me virar e de me dirigir novamente para o meu escritório.

      Desembaciei o espelho da casa de banho e comecei o ritual lento de me maquilhar e de me pentear. Não é algo que fizesse com frequência, já que a minha vida social era bastante limitada, mas, neste caso, teria preferido ficar em casa. Maquilhei-me com cuidado, perfilei os meus olhos azuis com sombra escura e marquei as maçãs do rosto com blush. Apanhei o cabelo num coque informal, com alguns caracóis soltos aqui e acolá, e observei o resultado ao espelho. Decidi que não estava mal de todo.

      Comprara um vestido de noite prateado e sugestivo, com um decote generoso à frente e outro ainda mais atrevido nas costas. Completei o conjunto com uns sapatos de salto muito alto, uma écharpe preta e uma mala minúscula da mesma cor em que tive de pôr o telemóvel, as chaves e algumas notas.

      Pulverizei à minha frente o perfume muito caro que nunca tivera oportunidade de usar e atravessei a nuvem fragrante muito devagar, permitindo que as gotinhas caíssem no meu corpo.

      O andar principal do museu estava cheio de pessoas quando saí do táxi e me dirigi para a entrada principal. Chegava trinta minutos atrasada em relação à hora oficial de início da festa. Por nada do mundo queria ser a primeira a entrar e ver-me obrigada a deambular sozinha por uma sala vazia.

      A empresa contratada para organizar a festa esmerara-se nos detalhes. Tinham posto várias mesas compridas e cobertas de toalhas grossas e vermelhas em diversos pontos do espaço enorme. Assim, não incomodavam as pessoas e aqueles que desejassem podiam aproximar-se das obras de arte ali expostas. Gideon ordenara que algumas das obras mais destacadas da nossa coleção de Claude Monet fossem instaladas em cavaletes à frente da sala. O Impressionismo não é a minha etapa favorita da arte, mas tenho de reconhecer que esses óleos têm a capacidade de atrair e prender o meu olhar, que costuma ficar perdido nas pinceladas curtas, rápidas e furiosas do francês. Na minha opinião, Monet foi demasiado prolífico e acomodou-se em apenas alguns temas. Os nenúfares aborrecem-me, mas os céus, sobretudo os de inverno, apaziguam-me o coração, normalmente, tão depressa e furiosamente como o seu pincel. Em qualquer caso, a escolha da decoração fora muito acertada. O comum dos mortais sentia-se muito ditoso ao ver a obra de um artista de renome tão de perto, independentemente do seu valor, e os convidados lançavam exclamações de aprovação ao descobrir os Monet espalhados por toda a sala e tiravam fotografias junto dos quadros. No entanto, a minha alma de conservadora não conseguia evitar tremer quando todas aquelas pessoas aproximavam as mãos da tela para apalpar a pintura com a ponta dos dedos ou para tocar na madeira da moldura. Meu Deus! Respiravam tão perto que podiam derreter o óleo com o calor da sua respiração. Porque não mantêm a distância? Bolas, porque é que Gideon não pusera um cordão de segurança? Fazia tudo para que abrissem os seus livros de cheques…

      Os vestidos das senhoras cintilavam à luz dos focos, enquanto os cavalheiros endireitavam as costas e encolhiam a barriga para usar os seus smokings com elegância. Distingui Gideon assim que entrei. Atento a todos os detalhes, esperava junto da sua esposa perto da porta, pronto para cumprimentar cada benfeitor assim que atravessasse a soleira. É claro, não mexeu um músculo quando me viu. Aproximei-me dele com um sorriso na cara e cumprimentei afetuosamente Rachel, a esposa dele.

      — Estás radiante — elogiei, com sinceridade. — O vermelho assenta-te bem.

      — Obrigada. — A sua surpresa era evidente,