Esta dispersão dominial por boa parte de Portugal (sobretudo em Trás-os-Montes, a sul de Coimbra e na Beira Interior, onde o rio Tejo funcionou como um eixo estruturante) refletia a configuração da propriedade da antiga Ordem do Templo.
A longa fase de transição dos bens de uma instituição para a outra, tendo os mesmos ficado, a título transitório, sob a administração régia, terá contribuído para a complexidade deste processo.35 Uma vez decidido o enquadramento para os bens dos Templários, em 24 de junho de 1319, D. Dinis restituiu à Ordem de Cristo determinadas propriedades.36 Por sua vez, em 20 de novembro de 1319, o Mestre D. Gil Martins deu carta de quitação ao rei, abrangendo todos os bens que recebera até então37 e, passados seis dias, toma posse desse património.38
A organização dos bens da Ordem de Cristo prolongou-se pela década de 20 do século XIV. As sucessivas Ordenações de 1319, de 1321, de 1323 e de 132639 demonstram a necessidade contínua de arrolar bens imóveis e de clarificar o seu estatuto no contexto da instituição. Comparados os estatutos jurídicos destes bens (organizados em cerca de 50 domínios), percebe-se o esboço de um processo de transferência de propriedade da tutela direta do Mestre e do convento para os comendadores, compatível com o reconhecimento de fidelidades à Coroa e à Ordem.
Exposta em síntese a evolução histórica da base patrimonial da Ordem de Cristo, chamamos a atenção para uma outra questão substantiva relacionada com a identificação das caraterísticas orgânicas e funcionais da própria Ordem. Em termos muito simples, que instituição é esta?
De acordo com a bula fundacional, devia organizar-se segundo a regra e as ordenações da Ordem de Calatrava, devia submeter-se à correição e visitação do Abade de Alcobaça da Ordem de Cister, tendo em conta a tutela de Cister sobre Calatrava.40 Já o Templo tinha tido uma matriz cisterciense, a qual terá condicionado a decisão papal de vincular a nova instituição a Calatrava, tendo por base um fundamento canónico.
Ao mesmo tempo que se fixava a base territorial através das sucessivas Ordenações, também se estabelecia o número de freires que compunham a Ordem de Cristo. As Ordenações de 131941 falam em 86 freires (71 cavaleiros, 9 clérigos e 6 serventes), as de 132142 apontam 84 freires (69 cavaleiros, 9 clérigos e 6 serventes), as de 132343 mencionam 80 (66 cavaleiros, 8 clérigos e 6 serventes) e as de 132644 recuperam os números da primeira versão, referindo 86 (71 cavaleiros, 9 clérigos e 6 serventes). Do ponto de vista nominal não se sabe quem era a esmagadora maioria destes homens. As perseguições aos Templários, ocorridas sobretudo em França,45 não parecem ter tido lugar em Portugal, pelo que alguns Templários terão transitado para a nova Ordem.46
A segunda questão que acima referimos, e que se afigura determinante para a compreensão da criação da Ordem de Cristo, consiste no reconhecimento de que não se tratou de uma ação isolada no contexto que então se vivia. O evidente controlo deste processo pela monarquia tem eco em outras manifestações do reforço da autoridade régia sobre todas as outras Ordens Militares.
Com o final da reconquista territorial em Faro em 1249, percebe-se que se tinham criado as condições que permitiriam inaugurar uma nova atitude frente às Ordens Militares, isto é, um novo ciclo caraterizado pela intervenção régia nas Ordens e pela gradual perda de autonomia. O controlo das Ordens Militares por parte da monarquia era obrigatório para garantir a convergência de interesses, preocupação mais do que evidente no reinado de D. Dinis. As Ordens Militares tornam-se fundamentais para o desenvolvimento político, funcionando como um estímulo, uma espécie de elemento de pressão, para que a própria monarquia encontrasse formas governativas cada vez mais elaboradas e afirmasse a sua maturidade. Neste sentido, as Ordens Militares são convertidas em instituições para servir a monarquia e submetidas à sua autoridade, como provam as ações concertadas que atingem todas elas, como apontamos de seguida em termos muito sintéticos.47
No que diz respeito à Ordem do Templo, a coroa forçou a procura da autonomia do ramo português. Neste contexto, estão documentadas sentenças contra a Ordem do Templo em 1272,48 1274,49 127850 e 1283.51 Mas, o mais significativo foi o aproveitamento da sua supressão internacional para a criação da Ordem de Cristo.
Quanto à Ordem do Hospital, D. Dinis procedeu a várias permutas patrimoniais com os freires nos anos de 1286,52 1305,53 132354 e 1324,55 fazendo prevalecer os interesses do poder central,56 ao mesmo tempo que aumentava o controlo sobre a instituição. As contendas com a coroa ao longo deste reinado podem ser interpretadas neste mesmo sentido disciplinador.57 A partir da última década do século XIII, intensificam-se os conflitos em que a Ordem esteve envolvida, como comprovam documentos de 1291,58 1309,59 131260 e de 1321.61
Em relação à Ordem de Santiago, desenvolve-se a autonomia do ramo português face ao convento de Uclés, através da eleição de um mestre para Portugal. Até 1288, Portugal era considerado apenas como uma comenda no âmbito da organização peninsular espatária. Só com Pedro Escacho se redigiu, pela primeira vez, uma lista de comendas de Portugal, o que é bastante significativo.62
Por último, no que toca à Ordem de Avis, também se trava um processo de independência em relação a Calatrava.63 O rei D. Dinis quer interferir na escolha do mestre e afirma que esta Ordem é «cousa minha e dos reys que forom ante mim e que depos mim am de viir»,64 numa atitude intrusiva ao nível da orgânica interna da instituição, já que os mestres, em teoria, seriam eleitos pelos freires no convento. À semelhança do que se verificou em organizações congéneres, também houve litígios entre esta Ordem e o rei, que se revelam cruciais para interpretarmos esta conjuntura.65
Protagonizando