É ele, o problema. Atormenta-me, não me dá paz. Já passa anos.»
«É uma convivência difícil?»
«Não somos conviventes. Não mais, pelo menos. Já fomos, num certo sentido, durante um brevíssimo período, mas há alguns meses voltei a viver sozinha. Ele, contudo, está sempre presente. Sei. Sinto. Qualquer encontro, com quem quer que eu tenho a ver, ele está.»
«Você trabalha, senhora?»
«Sim, ate quando não conseguirá fazer-me perder o posto, talvez tramite algum seu amigo. São todos seus amigos. Ele manobra-os, dirige-os. E eles fazem aquilo que ele quer.»
«E o que quer, ele?»
«Ele? Quer-me ver morta.» Morta que palavrão…
«Disse ele? Lha ameaçou?»
«Não… não… não disse por acaso. Mas é aquilo que quer. É ai, que quer chegar. Eu sei perfeitamente. Preciso de ajuda.»
«Exacto. Esteja tranquila. Mas diga-me, em que sentido a tormenta?»
«Chama-me, telefona para mim. Diz sempre as mesmas coisas, que ma fará pagar, que não sou nada. Sabe sempre tudo, e do resto não difícil. A minha vida é feita de nada, praticamente. Perdi tudo. Amigas, parentes, conseguiu distanciar todos de mim. E quando nos encontramos, é ameaçador: deixa-me com medo.»
Os conceitos estavam condensados. Frios. Como se representasse um guião.
E algo não condizia. Como ousaria dizer «quando nos encontramos»?
«Encontram-se? A senhora encontra-o ainda?»
«Sim, as vezes sim. Saímos juntos ainda, ou vem na minha casa. Às vezes me segue. Outras vezes estaciona perto donde trabalho. Encontra-mo em todo o lado.»
«Há quantos anos se conhecem?»
«Cinco ou seis. Depois contacta-me de todas as formas: SMS, e-mail. Toda desculpa é boa para procurar-me, e mandar-me mensagens. Na verdade controla-me.»
«É apenas ameaçador, como diz a senhora, ou faz outras coisas?»
«Às vezes é… violento.»
«Violento? A espanca?»
«Pois bem… sim. Num certo sentido… na verdade… digamos que é violento…»
As faces estavam ligeiramente avermelhadas, e os olhos reparavam para baixo. Resolvi não insistir mais.
«Parece-me que a nível hipotético, feitas as posteriores avaliações, poderiam haver os elementos para uma denúncia. Por moléstias, talvez.»
Um relâmpago de medo lhe atravessou o olhar. Agora parecia confusa.
«Denuncia penal? Aquela que depois faz-se o processo com o interrogatório?»
«Sim, uma coisa do género. Não é aquilo que quer? A senhora, exactamente, o que quer obter? Uma condenação? Um ressarcimento? Qual é o seu objectivo?»
Ficou furiosa, a dado passo.
«Eu não sei o que quero. Gostaria que ele pagasse por aquilo que me fez, e que me está a fazer. Quero ser deixada em paz. Eu quero viver. Não sei se quero denunciá-lo. Advogado, quanto ao senhor, pode-se fazer alguma coisa?»
«Bom, num certo sentido… talvez sim. Digamos que talvez há moléstias, mas é uma coisa para avaliar. Entretanto traga-me tais e-mails, tais mensagens, desta forma analisaremos melhor. Depois eu falo com o advogado, e lhe deixo a par da situação, está bem?»
«Está bem.»
«Uma última coisa: eu não sou advogado. Não ainda, pelo menos…»
«Para mim é como se fosse… e seja como for… obrigada.»
Um sorriso dulcíssimo iluminou-lhe o rosto. Era a mais esplêndida desaparafusada que tivesse por acaso conhecido.
Apertou-me a mão e eu antecipei-a no corredor para acompanhá-la à saída.
O sorriso malicioso de fanny era mais malicioso do normal, e na penumbra, no sofá, percorreu o perfil de Mutolo.
Virgínia desaparece para além da porta, e eu quisera muito fazer uma pausa para perceber o que estava a acontecer no escritório.
Dei sinal a Mutolo para esperar. Ele anuiu, inclinando apenas a cabeça, e falando em voz baixa perguntei a Fanny se há quanto tempo ele estava ali.
«Já estava quando regressaste», foi a resposta sussurrada. Nem sequer eu o tinha notado. E não me espantei.
Mutolo.
Como bem sabia, na arte da camuflagem era um fora de serie. Tinha, alem disso, a maneira de fazer, preciso, de jacaré: era capaz de estar imóvel durante horas, mas sempre sem suspeitas pronto para um salto fulmíneo quando fosse necessário.
Era assim que o tinha forjado a vida.
Salas de espera e filas intermináveis, a todas as temperaturas, para prestações sanitárias, desempenhos burocráticos de varia ordem e natureza, e assim por adiante, selva de grosseiros, espertos, prepotentes e criminosos de todo o género.
Habituado a sobreviver no meio duma selva de humilhações, pequenas injurias, abusos e vexames típicas de quem não tem voz em capítulo ou um amigo perfeito.
Habituado, também, a comportar-se e mover-se como uma anilha que estava nos últimos degraus da cadeia alimentar/burocrática: poucas presas e muitos predadores.
Vestido às camadas, carregado de todo o tipo de documentação útil à necessidade, ele sempre abastecido por água – garrafinha de meio litro – e pacote de crackers para os momentos de fome extrema, tinha feito do mimetismo urbano a sua estratégia vencedora.
«... Um homem treinado para ignorar a dor, para ignorar o frio, para viver daquilo que encontra, para comer coisas que deixariam vomitar uma cabra…»
O coronel Trautman usava estas palavras para descrever Rambo no homónimo filme, mas de facto tinha descrito também Mutolo.
Enfim, era um que sobrevivia e, que se acredita ou não, estava melhor que muitos outros.
Era um herói metropolitano, que convidei para entrar no meu pequeno gabinete no fundo do corredor.
Levantou-se, seguiu-me silencioso e sentou-se, cortês como sempre.
Sei lá o que pensava daquele cenário do fax cujo tinha certamente assistido dando atenção aos mínimos particulares: para Mutolo não escapava nada.
Na realidade tinha-me questionado com frequência o que estivesse a pensar durante todas aquelas horas.
De todas as formas eu sabia o que tinha sucedido.
O motivo da angústia geral não era questão da causa perdida, mas de advogados.
Advogados da parte contraria, exactamente.
Era muito difícil ver o advogado Spanna zangado.
Mas quando acontecia, eram dores, e aquela vez teria certamente acontecido.
O advogado que patrocinava a «parte contrária», efectivamente, era um certo Paceno. Achille Paceno.
Um gordo filho do papá, muito detestável como incapaz, muito rico (da família) como fanfarrão e cheio de si, muito ignorante quanto idiota. Tam quam sò sete, as qualidades negativas (cortado o «gordo» e o «rico», que sozinhos «não implicam», como se diz em gíria, mesmo porque tenho amigos assim, e são excelentíssimas pessoas). A mesma composição química da Ester nítrica sociológica. Um chato, um gato aferrado nos cancros e por ai adiante.
Mesmo sendo sensivelmente mais jovem que o meu «chefe», o advogado Paceno tinha começado desde cedo a faltar-lhe respeito. Era a clássica maçã podre, como existem em todas as categorias. Sendo incorrecto, sem girar bastante em torno, tinha conseguido fazer-se odiar mesmo pelo Spanna, que foi engordar