e não respondeu.
Esther levou a mão à boca e refugiou-se com toda pressa fechando a porta às costas.
Às vezes os acontecimentos da vida cruzam-se de forma imperscrutavelmente complicada, «baralham-se», enfim.
O processo de perturbação é democrático. E as vezes diabólico. A bola da roulette, naquela tarde, tinha parado na casa do advogado Spanna.
Todos advogados, por definição, no papel de defensores «vencem» ou «perdem» contenciosos. É estatisticamente impossível que isto não aconteça em percentagem mais ou menos variável. Assim como não é pensável imaginar que um advogado não leva em conta – sempre – a possibilidade que a parte assistida (como é frequentemente por eles definido o cliente), não obstante prognósticos favoráveis, sucumba.
É lógico, pois, esperar uma certa frescura, quando isto acontece.
E de facto o advogado Spanna não pestanejou depois de ter enforcado os óculos e lido impassível a disposição do juiz civil que via a sua cliente arrojadamente perdedor num processo de separação.
Aquela cena evocava assoladamente uma canção de Jannacci, que mais ou menos recitava: «… aqueles que… quando perde o Inter… ou Milan… dizem "no fundo é apenas um jogo de futebol" e depois voltou para casa e batem nos filhos… (ooohhh yeeeah)»
O advogado pousou as folhas, pegou o celular, e saiu do escritório como se nada fosse, passando diante de mim e dizendo apenas, de meia voz: «volto daqui a nada».
Não se deu conta, naturalmente, da presença de Mutolo, imóvel e perfeitamente camuflado com a tapeçaria do corredor.
MUTOLO
Mutolo estava acima dos setenta. Era magro, esbelto, e o conheci nos corredores da universidade, um pouco antes de licenciar-me.
O tinha visto muitas vezes seguir algumas aulas, nas tardes frias, e me questionava quem seria. Tinha pensado que quisesse licenciar-se. Muitos o fazem. Uma vez já reformado, com uma grande quantidade de tempo livre a disposição, os filhos com a vida organizada, e todo o resto, talvez dedicam-se a retomar algum velho discurso interrompido por eles mesmos, como uma licenciatura nunca feita por mil motivos.
Mas um dia compreendi que para Mutolo não era assim.
Entretanto, não trazia por acaso consigo um livro, nem um bloco para os apontamentos ou coisas do género.
Era cuidadoso, digno. Vestido, mais ou menos, sempre da mesma forma. Nunca reparava ninguém nos olhos, nem tão-pouco quando era observado. Às vezes extraía dalgum lugar uma garrafinha de água, e com discernimento bebia um gole.
Muitas vezes, incrivelmente, não te dás conta dele até quando não se movia por uma qualquer razão, tipo assoar o nariz ou, precisamente, beber o conteúdo daquela garrafinha que se materializava do nada.
Comecei curioso a procurar a sua presença, e dei-me conta que era capaz de permanecer imóvel durante horas cheias, como nem um actor de rua que finge de ser uma estátua conseguiria fazer.
Depois, uma tarde, percebia realidade a partir dalguns pequenos detalhes, confirmada de seguida pela confiança duma saída à qual tinha pedido informações sobre ele, para verificar se tivesse justamente bem visto.
Disse para mim que frequentava a faculdade apenas no período de inverno, e em particular nos dias mais frios. Acrescentou que não incomodava a ninguém, e que muitas vezes nem se apercebia da sua presença. Tinha ouvido dizer que estava só no mundo, num certo sentido, e que às vezes comprava dos estudantes o bónus da cantina universitária, para ir comer.
Estranho, porque não teria sido possível, por via da idade, que se fizesse passar por um estudante. Evidentemente, deduzi, ninguém o tinha notado.
Uma manhã, era quase Natal, fui ao encontro de um amigo ao Policlínico. Trata-se duma estrutura hospitalar enorme, com um grande vaivém de pessoas praticamente em todas as horas. Lá para as 12, no momento em que saía da secção para regressar a casa, vi Mutolo na parte traseira dum armazém que dava uma moeda a um enfermeiro. Pouco depois entregaram-no uma bandeja usa e deita fora, daquelas seladas, com a refeição do hospital. Devia ser um dos muitos que restavam, por erro no cálculo ou porque muitos pacientes comiam, de vez em quando, aquilo que os parentes traziam das suas casas.
Aquela cena compôs o mosaico: Mutolo não roubava, Mutolo não pedia esmola, Mutolo não se queixava, nem se humilhava. Mutolo, simplesmente, se esforçava. Sobrevivia.
Frequentava a faculdade de direito, deduzi, porque era um lugar aquecido, procurando a um bom preço alguma refeição também ali. Quem sabe quantas outras se inventava, de coisas como aquela.
Senti uma infinita ternura por aquele homem tão condignamente camuflado, e senti uma exigência de fazer algo para ele.
Cheguei perto dele um tempo depois. Estava no corredor, perto dos termos convectores, debaixo duma janela. Fingi parando ao lado dele por acaso, com a desculpa de encostar dois livros na pequena soleira de mármore para vestir o blusão, e abotoei os botões com uma desculpa banal.
Ele na pareceu desconfortável, mas tinha nos olhos uma disposição triste, como se esperasse que nos disséssemos qualquer coisa e depois terminaria por aí.
E pelo contrário, no dia seguinte, cruzando com ele, saudei-o. Pareceu-me desorientado, e também apreensivo.
O muito estava feito.
Mutolo, pois, era um pensionista. Ganhava o mínimo, e vivia alugando. Praticamente, claudicava para chegar no fim do mês, não obstante os sacrifícios. Não fui mais além com as investigações, mas creio que tivesse filhos, perdidos enfim em algum lugar do mundo, com os quais não tinha relações ou quase. Era viúvo. Era solteiro.
Depois uma ideia: inventei um discurso colossal, para evitar ofendê-lo. Mas era credível. Disse que uma pessoa da minha confiança queria um guia para restaurantes, e que tinha necessidade dum mistery shopper, o chamado cliente misterioso.
Ele, Mutolo, deveria ir ao almoço, ou ao jantar, em alguns exercícios por mim indicados, próprio mais de uma vez (a indiscutível descrição da nunca nomeada empresa que pagava a refeição, obviamente) para fornecer uma detalhada relação tida como objecto: qualidade da comida, rapidez do serviço, cortesia do pessoal e coisas deste tipo.
Depois de algumas duvidosa relutância, a declaração que lhe teria sido entregue previamente o dinheiro vivo para pagar forçou-o a aceitar sem outras inúteis perguntas.
Era um cargo de confiança.
Comecei com o almoço do dia de Natal.
«Mutolo», disse uma manhã mostrando poucas esperanças.
«Sei que para o senhor seria um sacrifício enorme, mas não é que estaria disponível para fazer uma saída no dia 25, ao almoço?»
Com um tom ligeiramente implorante, acrescentei: «sabe, para mim seria importante fazer boa figura, com a empresa comitente, conseguindo encontrar alguém disponível numa data tão difícil. Faço muita questão, e lhe serei realmente grato».
Mutolo, no dia 25 de Dezembro, de casaco e gravata, às 12:45 horas em ponto, sincronizado com a escala do tempo racional do relógio atómico, como estipulado fez a sua entrada, previa reserva, no restaurante La lanterna. Dispunha dum orçamento mais ou menos de 120 euros no máximo bebidas incluídas, como programado.
A linha empresarial era inflexível: entrada, um primeiro prato (ou duas degustações, a escolha), um segundo prato, acompanhamento, fruta, doces e café. Espumante (ou champanhe) dada a festividade, e para não dar na vista.
Sempre segundo os ditames da inexistente empresa, devia absolutamente parecer um cliente normal, para evitar que, caracterizado, fosse objecto de particulares cuidados e atenções validas para alterar o resultado estimativo.
A execução foi perfeita, e o dia 28, como combinado, nos encontramos no bar ao lado da universidade, onde é me entregue ao resguardo dos