de «que se lixe, e obrigado por haver escolhido».
Pago o café no absoluto silêncio, saí e reparei-me em volta.
«Advogado!»
À minha esquerda chegava, ofegante e a pé, Cerrati. Cerrati era amigo/hoje quase cliente do quase advogado… Alessandro», de longa data. As suas chatices eram geralmente uns emaranhamentos emporcalhados e inextricáveis, mas no fundo tratava-se de situações fúteis, que mesmo um estudante como eu conseguia, de qualquer forma, resolver de modo indulgente. Por ventura não era preciso um advogado verdadeiro, e Cerrati, em troca, oferecia-me hospitalidade disponibilizando-me durante alguns fins-de-semana a sua casa perto do mar, desconhecendo que isto teria atrasado os meus estudos, e desconhecendo, sobretudo, que tinha feito uma cópia das chaves.
A isso é preciso acrescentar a graça de Cerrati: «quebro-me mas não me desdobro».
Normalmente, para perceber algo dum novo caso ocorria em média uma boa hora de conversa, e pelo menos seis ou sete apelos à ordem.
A famosa frase «explica-me tudo como se eu tivesse cinco anos», pronunciada num cenário de Philadelphia por Denzel Washington (desempenhando as funções dum advogado), provocou um rápido incremento de eficácia explicativa sobre Tom Hanks (desempenhando o papel de cliente).
A mesma frase, pronunciada um tempo antes por mim, provocou em Cerrati uma reacção anómala: «advogado, não me permitiria nunca».
A vida não é um filme.
Alias a minha brevíssima vida profissional não tinha sido concretamente luminosa e repleta de sucessos.
Não é que eu fosse imbecil, concretamente. Mas não estava precisamente tão próximo ao primeiro modelo da classe. A definição mais apropriada à minha forma de ser era mais provavelmente um interessante: inteligente mas se distrai facilmente.
E assim durante o período necessário para licenciar-me (quase duas épocas), distraí-me, efectivamente, muito. Particularmente com o universo feminino, perante a qual ficava sinceramente encantado.
A descoberta de novos universos, sabe-se, desperta o instinto de exploração, e toda uma serie de outros instintos.
Às vezes, com o outro sexo, não disparava aquela necessária sintonia-psico-socio-relacional-sexual, não obstante aparentes premissas ideais, e eu não era exactamente um «predador», como individuo. Para entender-nos, fora sempre definido «um tipo estranho», a partir deste ponto de vista: tinha a necessidade de mais factores concomitantes, para terminar na cama com uma mulher. Em suma, ocorria algo qualquer que não saberia tão-pouco definir bem, caso contrário não ousava tão-pouco. Não é que fosse uma beleza, que esteja claro. Mas a meu modo gostava, e acontecia – como posso dizer – não muito raramente. Seja como for, quando a alquimia conseguia eram faíscas, emoções absolutas, paixões líquidas, experiências irrepetíveis. Como execuções de orquestra. O ponto de equilíbrio perfeito. É inútil recusá-lo ou fingir de não sabê-lo, algumas vezes não é química, é magia: cumplicidade, frescura, curiosidade, transgressão e novidade.
A um passo do paraíso. E a dois períodos da universidade. De seguida, depois de irregulares entregas ao estudo, a licenciatura foi alcançada, e veio a pratica forense.
Um período de substancial estágio junto dum ou mais escritórios de advocacia, durante o qual o futuro advogado deve experimentar, experimentar-se, e capitalizar em termos práticos a bagagem teórica acumulada no percurso estudantil.
Em suma um percurso formativo, para muitos, que na realidade, através dalguns, vinha definido a clássica experiencia a noventa graus.
Não para todos – como posso dizer – vinha fornecida a real possibilidade de aprender. Eu, do meu canto, tive certamente o modo de perceber um monte de coisas.
Muitos sustentam que na vida é importante ter dois valores. Uma vez reparei uma furgoneta blindada, com seguranças armados e com uma escrita TRANSPORTE DE VALORES. A ética não tinha por acaso parecido tão preciosa.
Cerrati alcançou-me sem fôlego. Estava trajado como sempre, um cruzamento entre um burocrata e um realizador da transvanguarda francesa.
Tinha uma pasta a tiracolo, de pele, enfim completamente deformada e desgrenhada, transbordante de correspondências sei lá de que origem, e de braço dado com umas folhas, misturadas com paginas de jornal únicos e varias correspondências cheia de envelopes. Tudo meio fechado num semanário que teria deixado a satisfação sei lá de quantos coleccionadores.
«Advogado, meu deus, desculpe o atraso, mas parquear no centro da cidade é sempre muito difícil, e pensar que no momento em que procurava um lugar aconteceu-me uma coisa… olha… uma coisa terrível… uma senhora… precisamente no momento em que eu tinha visto o parque de estacionamento… considerando que eu sou sempre prudente… aquela chegava disparada, advogado, e digo disparada… está claro que se corre sempre… mas a uma velocidade de loucos… digo eu… existem crianças… sei lá…»
O Cerrati de sempre.
«Cerrati, desculpe-me», interrompi-o.
«Não advogado, por caridade… desculpe-me senhor… ou melhor… eu…»
«Está bem, Cerrati. Percebi o que tenciona. São coisas que acontecem. A propósito, trouxeste os documentos?»
«Sim, advogado! … sim… eis aqui: organizei-os, como recomendou o senhor!»
Ao pronunciar estas palavras, entregou-me a correspondência que tinha observado um pouco antes. O conceito de «ordem», do ponto de vista de Cerrati, era a demonstração científica da eficácia do termo «relativo». Sim. O monte informe de papel amarrotado era para mim. Hesitava instintivamente, em levá-lo, e Cerrati esticou as mãos um pouco ainda. Encorajou-me.
«Obrigado, Cerrati: naturalmente hei-de observá-los apenas possível.»
Minha senhora, mas certamente… sim… eu pensava… talvez o senhor, com muitas ocupações importantes… eu antes tenho que lhe agradecer…»
Todas as tarefas importantes… e porque não…
«Combinado. Então vou, porque infelizmente, sabe, tenho um outro compromisso, e não posso atrasar.»
«Ah! Mas olha, advogado, que se tem justamente um tempinho lhe explico… em linhas gerais…»
«Obrigado, Cerrati, mas prefiro falar com conhecimento da causa: logo que terminar lhe comunico eu…»
Àquelas palavras, Cerrati contra a vontade distanciou-se, reparando-me a desvanecer-se a ocasião de manter-me ali pelo menos uma boa hora para ilustrar-me «sinteticamente» o assunto. Eu, pelo contrário, às 16:45 hora local já estava de regresso: tinha um compromisso.
Tinha apenas fechado a porta às minhas costas, quando o fax ao lado de Fanny, depois dum toque delicado, começou a gralhar e a emitir lentamente, através daquele orifício tecnológico que certa vez parece a evolução da «boca da verdade», uma escrita proveniente da chancelaria do tribunal. O sorriso malicioso começou a degradar-se lentamente, a partir do rosto da inveterada secretaria, na medida directamente proporcional às linhas legíveis na medida em que apareciam. Quando o documento foi completamente emitido, já o tinha lido todo, e observando-o no rosto podia-se pensar que naquelas escritas tinha sido anunciado o fim do mundo.
Sem dizer uma palavra, recolheu as duas folhas, e com um passo incerto dirigiu-se em direcção da sala do advogado, entrando e reaparecendo na entrada poucos segundos depois. Tomou de novo o seu lugar e continuou a manobrar o pc como se nada tivesse acontecido.
Mas pelo ar percebia-se um estranho silêncio. Mais que outra coisa era como se uma espécie de «buraco negro» sonoro que absorvesse qualquer outra coisa mesmo fisiológico rumor de todo o escritório.
A atmosfera tornou-se imaginário.
Esther, a jovem advogada, sobrinha do advogado Spanna, que ocupava o primeiro gabinete à esquerda, como obedecendo a um silencioso apelo espreitou furtivamente: