com ela. Por alguma razão, achei isso desconcertante. Não que eu sentisse tanta falta do cachorro, mas me senti abandonado. Andei um pouco e depois me ocupei de atualizar meu diário.
Antes do amanhecer, ela e Hero retornaram com carne fresca. O cachorro usava uma coleira de couro trançado que eu nunca tinha visto antes. Cian trabalhou próximo ao fogo, esfolando e cortando a caça, e depois pendurando as tiras de carne na fumaça. Hero e eu a assistíamos.
– Mulher surpreendente – eu sussurrei para ele.
Ele não respondeu; apenas me observou rapidamente. Depois de um momento, ele a fitou e, com um suspiro profundo, apoiou o queixo nas patas estendidas da frente.
Cian era ao mesmo tempo jovem e madura. Ela poderia ter vinte e cinco ou trinta e cinco, mas duvido que ela alguma vez considerasse seu aniversário de falecimento. Ela era jovem e esbelta no corpo, mas amadureceu muito além dos anos em sabedoria e astúcia. A Amazônia pulsava em suas veias e cintilava em seus olhos, repleta de vida, mas fria e calculista. Vida e morte foram eventos que aconteceram, não considerações emocionais. Não, não falamos dessas coisas; percebi pela maneira como ela usava sua faca, perspicácia e corpo. Talvez ela não fosse mais que uma criatura feroz no coração, mas isso não importava para mim.
A Amazônia havia fornecido o material para reconstruir o membro que faltava em seu corpo. Esse acoplamento de madeira e tecido humano a tornou ainda mais parte da natureza, e a natureza parte dela. Não apenas ela nunca havia usado sua condição para obter nossa condescendência ou simpatia como, na verdade, ela era mais ágil na floresta do que nós. Achei prudente não fazer referência óbvia a isso, embora estivesse curioso sobre o que aconteceu, esperaria até que meu conhecimento da língua dela aumentasse além de algumas palavras antes de tocar no assunto. Embora a Amazônia tivesse lhe proporcionado uma nova perna, alguém, ou alguma coisa, em sua selva havia tomado a antiga.
Capítulo quatro
Encontramos uma rica variedade de flores, trepadeiras e ervas nas margens do lago, Kaitlin estava extremamente excitada. Cian ocasionalmente colhia uma folha ou galho e indicava que poderia ser usado para curar um corte ou aliviar uma dor de cabeça.
Enquanto as duas vagueavam pela floresta o dia todo, Rachel e eu fomos pescar. Hero não estava conosco, sempre que podia escolher entre ir atrás de Cian ou sair comigo e Rachel, Cian era sua favorita. Aparentemente, a lealdade canina ao seu dono nunca fora explicada adequadamente ao vira-lata ingrato.
Rachel e eu descobrimos, para nossa intensa alegria, que o lago era lar de uma variedade imensa de tilápia vermelha. Elas não tinham medo de humanos em canoas balançando anzóis, então logo tivemos uma pegadeira com peixe saboroso para o jantar. Enquanto Rachel nos direcionava de volta à costa, decidi que nossa jornada a Alichapon-tupec poderia esperar mais alguns dias. Com a água agora azulada batendo na lateral do nosso barco e nuvens inchadas navegando no céu acima, peguei meu bloco de desenho e pensei em Cian e nas pétalas de flores que ela ocasionalmente colocava atrás da orelha. Era impressionante como em uma selva cheia de beleza, todas as orquídeas ao longo do caminho empalideciam quando comparadas a ela.
Notei que Cian me olhava com mais frequência, no começo, ela parecia gostar mais de Hero que de mim; quase nunca olhava na minha direção e preferia, penso, manter distância, e assim mantive. Ela estava sempre acariciando o cachorro, levando-o para caçar com ela, guardando pequenos petiscos do prato para ele, parecia tolerar a minha presença como a dos ratos e piranhas, ou das cobras que ela parecia odiar com certa intensidade. Poucos dias atrás, eu era apenas outra coisa que precisava ser suportada, mas agora era diferente, ela acidentalmente esbarrava em mim perto da lareira, derramava chá no meu joelho ao passar ou pegava algum utensílio ao mesmo tempo que eu.
Na tarde do segundo dia no lago, Kaitlin decidiu que era hora de lavar nossas mudas de roupa, estávamos começando a exalar um odor um tanto forte.
Rachel, Kaitlin e eu esfregamos nossas roupas com barras de sabão no topo de um afloramento, onde uma pequena queda d'água borbulhava no lago. Cian ajudou Rachel a lavar a roupa, e muitos respingos aconteceram no final da fila enquanto elas riam e conversavam; Rachel tagarelava em português, enquanto Cian respondia com seu Yanomami. Logo a água espirrou em mim. Olhei na direção delas, que rapidamente desviaram o olhar como se a água tivesse vindo de outro lugar.
Cian disse algo para mim.
– O quê? – eu perguntei – Não entendo.
Ela se aproximou de mim, segurando o sabão de Rachel.
– Agora cai dimguri ensaboado.
– Dimguri? – Eu disse balançando a cabeça.
– Ra-CHEL, por favor – disse Cian à garota – faz palavra pro tio Saxon?
Elas discutiram algo por um minuto usando palavras e sinais.
– Eu acho – disse Rachel – que ela quer saber se você sabe nadar.
– Ah – respondi, acenando com a cabeça – Nadar? Sei sim.
Assim que eu disse isso, ela me empurrou da cachoeira e eu caí em um mergulho. Ali, próximo à margem, não era muito profundo, rapidamente cheguei à superfície, me debatendo um tanto na água. Todas as três riram quando Hero latiu para mim. Meu chapéu flutuou para a superfície, com o velho Zippo ainda preso na faixa. Eu alcancei o chapéu e o joguei em Cian, que riu novamente e jogou a barra de sabão para mim. Peguei-o e, depois de tirar a camisa, coloquei em uso.
Cian mergulhou de cabeça no lago e surgiu perto, afastando os cabelos do rosto. Joguei a barra de sabão para ela e logo todos, exceto Hero, estavam ali, tomando banho e jogando água para todos os lados. O cachorro correu ao longo da margem latindo, mas sem ousar entrar na água.
Uma manhã, acordei rindo e me sentei no meu colchonete para encontrar Cian e Rachel brincando com um jogo de pedras lisas e coloridas. Uma delas sacudia várias pedras na mão, jogava-as no lugar que limparam na terra e, sob algum sinal, pegavam o maior número possível de uma determinada cor. No final da rodada, elas abriam as mãos, olhavam para as pedras que haviam capturado e, num frenesi, arrancavam pedras de um certo tamanho das mãos da outra. Esse último momento vinha sempre acompanhado por um ataque de riso incontrolável.
Assisti a esse jogo por algum tempo e, apesar do esforço, não consegui determinar sua fórmula, que parecia bastante fluida de uma rodada para a outra.
No entanto, notei que minha sobrinha agora tinha seus cabelos loiros ondulados amarrados nas costas, mantidos no lugar por um delicado galho e duas orquídeas de coloração lavanda. O cabelo longo e escuro de Cian estava preso em duas tranças logo acima das orelhas, a esquerda um pouco mais alta do que a direita e ambas com presilhas, uma de plástico vermelho e a outra verde.
Encontrei uma rodela do pão de Cian pronto para mim em uma pedra quente perto do fogo, junto com uma xícara de chá com mel. Quando comecei meu café da manhã, de repente percebi que elas não estavam apenas rindo histericamente de vez em quando, mas entre as rodadas do jogo elas conversavam de um lado para o outro no que eu sabia ser a língua Yanomami! Nenhuma palavra de português foi dita.
Olhei para Kaitlin e a encontrei olhando para mim com um sorriso em seus lábios, elevei uma sobrancelha e ela deu de ombros voltando a estudar uma folha amarelada sob a lupa.
Capítulo Cinco
De manhã, saímos do lago entrando em um afluente esverdeado, que mais tarde se fundiu a um marrom.
No dia seguinte, continuamos remando até chegarmos a um lugar em que o córrego se alargava em um pequeno lago de retenção. A água tranquila era cercada por taboas e enormes vitórias-régias, flores cor-de-rosa no topo de bases translúcidas ondulavam como se perturbadas por algo que se movia embaixo delas, sapos venenosos alaranjados e pretos preenchiam vários lírios, esperando uma refeição se aproximar.
A água se aprofundou e ficou perfeitamente imóvel