Fernando Pessoa

Mestres da Poesia - Fernando Pessoa


Скачать книгу

meus anos ...

      Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

      Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

      Por uma viagem metafísica e carnal,

      Com uma dualidade de eu para mim...

      Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

      Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

      A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

      O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,

      As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

      No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

      Pára, meu coração!

      Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

      Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

      Hoje já não faço anos.

      Duro.

      Somam-se-me dias.

      Serei velho quando o for.

      Mais nada.

      Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

      O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

      Lisbon Revisited

      NÃO: Não quero nada.

      Já disse que não quero nada.

      Não me venham com conclusões!

      A única conclusão é morrer.

      Não me tragam estéticas!

      Não me falem em moral!

      Tirem-me daqui a metafísica!

      Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas

      Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —

      Das ciências, das artes, da civilização moderna!

      Que mal fiz eu aos deuses todos?

      Se têm a verdade, guardem-na!

      Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

      Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

      Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

      Não me macem, por amor de Deus!

      Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

      Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?

      Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.

      Assim, como sou, tenham paciência!

      Vão para o diabo sem mim,

      Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!

      Para que havemos de ir juntos?

      Não me peguem no braço!

      Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.

      Já disse que sou sozinho!

      Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

      Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

      Eterna verdade vazia e perfeita!

      Ó macio Tejo ancestral e mudo,

      Pequena verdade onde o céu se reflete!

      Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

      Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

      Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

      E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

      Às vezes medito

      Às vezes medito,

      Às vezes medito, e medito mais fundo, e ainda mais fundo

      E todo o mistério das coisas aparece-me como um óleo à superfície,

      E todo o universo é um mar de caras de olhos fechados para mim.

      Cada coisa — um candeeiro de esquina, uma pedra, uma árvore,

      E um olhar que me fita de um abismo incompreensível,

      E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos deuses.

      Ah, haver coisas!

      Ah, haver seres!

      Ah, haver maneira de haver seres

      De haver haver,

      De haver como haver haver,

      De haver…

      Ah, o existir o fenómeno abstracto — existir,

      Haver consciência e realidade,

      O que quer que isto seja…

      Como posso eu exprimir o horror que tudo isto me causa?

      Como posso eu dizer como é isto para se sentir?

      Qual é alma de haver ser?

      Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa

      Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa

      Porque é o pavoroso mistério de haver…

      Ricardo Reis

      Para ser grande, sê inteiro

      Para ser grande, sê inteiro: nada

      Teu exagera ou exclui.

      Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

      No mínimo que fazes.

      Assim em cada lago a lua toda

      Brilha, porque alta vive.

      Cada coisa a seu tempo tem seu tempo

      Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.

      Não florescem no Inverno os arvoredos,

      Nem pela Primavera

      Têm branco frio os campos.

      À noite, que entra, não pertence, Lídia,

      O mesmo ardor que o dia nos pedia.

      Com mais sossego amemos

      A nossa incerta vida.

      À lareira, cansados não da obra

      Mas porque a hora é a hora dos cansaços,

      Não puxemos a voz

      Acima de um segredo,

      E casuais, interrompidas sejam

      Nossas palavras de reminiscência

      (Não para mais nos serve

      A negra ida do sol).

      Pouco a pouco o passado recordemos

      E as histórias contadas no passado

      Agora duas vezes

      Histórias, que nos falem

      Das flores que na nossa infância ida

      Com outra consciência nós colhíamos

      E sob uma outra espécie

      De olhar lançado ao mundo.

      E assim, Lídia, à lareira, como estando,

      Deuses lares, ali na eternidade

      Como quem compõe roupas

      O outrora compúnhamos

      Nesse desassossego que o descanso

      Nos traz às vidas quando só pensamos

      Naquilo que já fomos,

      E