Fernando Pessoa

Mestres da Poesia - Fernando Pessoa


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nos fez postos

      Onde houvemos de sê-lo.

      Não tenhamos melhor conhecimento

      Do que nos coube que de que nos coube.

      Cumpramos o que somos.

      Nada mais nos é dado.

      Vós que, crentes em Cristos e Marias

      Vós que, crentes em Cristos e Marias,

      Turvais da minha fonte as claras águas

      Só para me dizerdes

      Que há águas de outra espécie

      Banhando prados com melhores horas

      Dessas outras regiões pra que falar-me

      Se estas águas e prados

      São de aqui e me agradam?

      Esta realidade os deuses deram

      E para bem real a deram externa.

      Que serão os meus sonhos

      Mais que a obra dos deuses?

      Deixai-me a Realidade do momento

      E os meus deuses tranqüilos e imediatos

      Que não moram no Vago

      Mas nos campos e rios.

      Deixai-me a vida ir-se pagãmente

      Acompanhada pelas avenas tênues

      Com que os juncos das margens

      Se confessam de Pã.

      Vivei nos vossos sonhos e deixai-me

      O altar imortal onde é meu culto

      E a visível presença

      Os meus próximos deuses.

      Inúteis procos do melhor que a vida,

      Deixai a vida aos crentes mais antigos

      Que a Cristo e a sua cruz

      E Maria chorando.

      Ceres, dona dos campos, me console

      E Apolo e Vênus, e Urano antigo

      E os trovões, com o interesse

      De irem da mão de Jove.

      Alberto Caeiro

      Eu nunca guardei rebanhos

      Eu nunca guardei rebanhos,

      Minha alma é como um pastor,

      Conhece o vento e o sol

      E anda pela mão das Estações

      A seguir e a olhar.

      Toda a paz da Natureza sem gente

      Vem sentar-se a meu lado.

      Mas eu fico triste como um pôr de sol

      Para a nossa imaginação,

      Quando esfria no fundo da planície

      E se sente a noite entrada

      Como uma borboleta pela janela.

      Mas a minha tristeza é sossego

      Porque é natural e justa

      E é o que deve estar na alma

      Quando já pensa que existe

      E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

      Como um ruído de chocalhos

      Para além da curva da estrada,

      Os meus pensamentos são contentes.

      Só tenho pena de saber que eles são contentes,

      Porque, se o não soubesse,

      Em vez de serem contentes e tristes,

      Seriam alegres e contentes.

      Pensar incomoda como andar à chuva

      Quando o vento cresce e parece que chove mais.

      Não tenho ambições nem desejos

      Ser poeta não é uma ambição minha

      É a minha maneira de estar sozinho.

      E se desejo às vezes

      Por imaginar, ser cordeirinho

      (Ou ser o rebanho todo

      Para andar espalhado por toda a encosta

      A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

      É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,

      Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

      E corre um silêncio pela erva fora.

      Quando me sento a escrever versos

      Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

      Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,

      Sinto um cajado nas mãos

      E vejo um recorte de mim

      No cimo dum outeiro,

      Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,

      Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,

      E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz

      E quer fingir que compreende.

      Saúdo todos os que me lerem,

      Tirando-lhes o chapéu largo

      Quando me vêem à minha porta

      Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

      Saúdo-os e desejo-lhes sol,

      E chuva, quando a chuva é precisa,

      E que as suas casas tenham

      Ao pé duma janela aberta

      Uma cadeira predileta

      Onde se sentem, lendo os meus versos.

      E ao lerem os meus versos pensem

      Que sou qualquer cousa natural —

      Por exemplo, a árvore antiga

      À sombra da qual quando crianças

      Se sentavam com um baque, cansados de brincar,

      E limpavam o suor da testa quente

      Com a manga do bibe riscado.

      Se eu morrer novo

      Se eu morrer novo,

      Sem poder publicar livro nenhum,

      Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,

      Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,

      Que não se ralem.

      Se assim aconteceu, assim está certo.

      Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,

      Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.

      Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,

      Porque as raízes podem estar debaixo da terra

      Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.

      Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

      Se eu morrer muito novo, oiçam isto:

      Nunca fui senão uma criança que brincava.

      Fui gentio como o sol e a água,

      De uma religião universal que só os homens não têm.

      Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,

      Nem procurei achar nada,

      Nem achei que houvesse mais explicação

      Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

      Não desejei senão estar ao sol ou à chuva