Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede...”
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Infelizmente as demais poesias do poeta não imitam essa sonoridade, envolvendo a pureza filosófica de uma ideia tão perfeita, tão justamente elevada e frisante.
Nota-se em todas as páginas deste volume a preocupação constante de tecnologia. Os versos do Sr. Augusto dos Anjos perdem, por isso, grande parte do encanto que a fórmula lhes empresta.
Citaremos, ao acaso, alguns. Vejamos essa quadra:
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Ora, isso, positivamente, é um amontoado de palavras difíceis e nada mais. Há ainda estas coisas:
Eu voltarei, cansado da árdua liça,
À substância inorgânica primeva
De onde, por epigênesis, veio Eva
E a estirpe radiolar chamada Actissa.
Não vale citar mais. Em todas as páginas do livro se encontram essas extravagâncias, muitas vezes atentatórias às regras da ciência.
Em compensações é, outro tanto, infeliz o autor de "Eu". Vejamos estas:
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
Outra:
Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Estando em Recife, num clima brasileiro, o Sr. Augusto dos Anjos afirma isto:
Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.
Não citamos mais. Todo o livro está cheio dessas ideias e dessas comparações.
O poeta é moço ainda e tem o talento bastante para abandonar essa poesia técnica, muito imprópria e muito postiça e atirar-se a outros gêneros em que possa mais belamente florir o seu verso.
Quem escreve versos como o soneto citado acima e os intitulados "Sonetos", a seu Pai, certamente tem emoção e pode vencer.
A Poesia Científica
Por Martins Junior78
Eis aí a nova fórmula, o novo credo, a nova lei, nos domínios da inspiração metrificada, na esfera das emoções sujeitas à sonoridade igual e ondulante do verso.
É convicção minha isso, e para cimentar essa convicção tenho argumentos de toda ordem, raciocínios de toda natureza.
E que os não tivesse... Bastava-me, para correr atrás dessa prometedora intuição poética, a necessidade moral de sentir e gozar uma chimásia esquisita, o desejo de provar um fruto ainda não mordido...
Da trajetória, cheia de cambiantes admiráveis, que Ela - a Poesia - tem descrito no tempo, isto é, na História; dos fenômenos artísticos que podem ser observados atualmente; dos recentes processos de exegética literária, dominados pela lei da filiação; enfim, do conjunto das idéias modernas, da orientação mental que têm tomado as civilizações mais avançadas; deduzo eu motivos para crer no evento da Poesia Científica
Vou precisar, ou antes: - vou justificar a asseveração que aí fica.
Em toda a longa desenvolução afetiva ou emocional da Humanidade, a partir do estádio iniciante do fetichismo, a Poesia tem representado um papel eminentemente útil, construtor, filosófico.
Foi preciso que a anarquia mental e moral, resultante do esfacelamento do regímen católico-feudal que jungia os povos do Ocidente, viesse, até o princípio deste século, anormalizar os espíritos, para que se pudesse negar essa verdade e ver simplesmente nas produções do gênio poético um artifício palavroso, destinado a sensibilizar o ouvido e a seqüestrar o homem das lutas intelectuais e práticas do seu tempo.
Raciocinemos:
No mais baixo degrau do primitivo estado da mentalidade humana, no período fetichista, as faculdades poetizantes, isto é, sensitivas e imaginativas, se deviam ter confundido com a potência propriamente intelectiva.
O homem fetichista, o tímido e supersticioso adorador da longínqua estrela faiscante, da grande árvore seivosa e da pedra bruta que avultava no chão, sincretizou, decerto, num só ato psíquico espontâneo, a sua compreensão intelectual dos fenômenos ambientes e as suas impressões propriamente sentimentais.
Portanto a sua poesia, se a teve, se a externou, se a compôs sob uma forma e por um modo qualquer, devia ter sido um reflexo vivo, uma quase cópia da concepção teológica do mundo na sua primeira fase.
A arte, aí, esteve, pois, estreitamente unida à ciência, à síntese filosófica que se impunha naquele tempo.
Esteve-o também, e então mais sensivelmente, no período das civilizações politéicas, que se seguiu ao primeiro.
O que são os poemas do divino Melesigenes, senão compêndios sonoros a lecionarem todo o antropomorfismo majestoso daquela filosofia e daquela religião da Grécia heróica?
Ali, a poesia, como a ciência, foi e não o podia ter deixado de ser, politeísta.
Durante toda a comprida dominação do monoteísmo católico, que substituiu as intuições greco-romanas, sempre o mesmo fato, a manifestação da mesma lei: a poesia a vulgarizar as idéias filosóficas reinantes.
Se Tomás de Aquino escrevia a Summa, encerrando inteiro em seu livro, e estereotipando nos traços de sua pena, o espírito da idade mediévica, Dante Alighieri forjava as brônzeas estrofes da Divina comédia, imortalizando as criações fantasmagóricas do inferno, do purgatório e do céu, e poetizando a teologia...
E assim por diante. Sob a Metafísica, através da Renascença, como dos pródromos da reação romântica que veio em seguida, a poesia refletiu sempre o status mental predominante.
E a diretriz que ela, com a positivação dos conhecimentos humanos, vai tomando agora, não é mais do que a acentuação dessa tendência.
De fato: o Conjunto da fenomenologia artística atual a que ainda há pouco me referi confirma, como disse, a tendência a que aludo.
Por toda a parte, na Europa inteira e nas zonas civilizadas da América, o espírito científico que se alarga vai dando lugar à eclosão de fórmulas afetivas adaptadas ao estado de positividade das inteligências. Aí estão nas manifestações literárias como na produção propriamente artística, o naturalismo, o impressionismo, etc. ...
(...)