Meg Waite Clayton

O último comboio para a liberdade


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exceção.

      — Geertruida… — murmurou Joop.

      Geertruida. Sim, então, voltou a baixar o jornal. Olhou para o cabelo do marido, com cabelos brancos nas têmporas, o queixo robusto, a orelha esquerda ligeiramente maior do que a direita ou talvez fosse a que se realçava mais. Mesmo depois de todos aqueles anos, Truus ainda não tinha a certeza.

      — Geertruida — repetiu Joop —, alguma vez pensaste em acolher algumas dessas crianças, como a tua família fez na Grande Guerra?

      — Para que vivam connosco? — perguntou ela, com cautela.

      Ele assentiu.

      — Mas são órfãos, Joop. Não têm pais para quem regressar.

      Joop assentiu novamente, sem desviar o olhar. Truus viu no brilho dos seus olhos claros, na sua tentativa de esconder os seus pensamentos, que ele também passava pelo canal para ver as crianças a brincar e os pais a conversar.

      Esticou o braço por cima da mesa e apertou-lhe a mão, tentando agarrar-se a um sentimento avassalador de esperança. Joop sentia-se incomodado quando ela era sentimental.

      — Temos o quarto extra — replicou.

      Ele cerrou os dentes, o que acentuou o seu queixo robusto.

      — De todas as formas, estive a pensar que devíamos mudar-nos para um lugar maior.

      Truus olhou para o jornal, para o título sobre a nova lei de imigração.

      — Para um apartamento maior? — perguntou.

      — Podíamos ter uma casa independente.

      Ao sentir o aperto da sua mão, soube que aquilo era o que desejava, tal como ele. Um tipo de família diferente. Uma família que escolhiam, não uma que era enviada por Deus. Crianças que escolhia amar.

      — Seria difícil para ti quando eu não estivesse cá — indicou Truus.

      Joop recostou-se na cadeira e afrouxou um pouco a pressão da mão. Percorreu com os dedos os anéis que usava: A aliança de ouro, símbolo do seu casamento; o rubi verdadeiro, não as cópias que fizera para os subornos pouco depois de começar a atravessar a fronteira com as crianças; e as alianças entrelaçadas que Joop lhe oferecera da primeira vez que ficara grávida, para marcar o começo da família que achavam que teriam.

      — Não — disse o marido. — Não, seria impossível tomar conta das crianças se não estivesses cá, Truus, mas, com esta nova lei, já não poderás continuar a trazer crianças da Alemanha.

      Truus olhou para Nassaukade, para o canal, para a ponte e para Raampoort. Tudo continuava às escuras. Do outro lado do canal, noutra janela iluminada do terceiro andar, um pai baixava-se junto de uma criança, que continuava sentada na cama. Amesterdão estava a acordar. Por enquanto, as ruas continuavam vazias, mas depressa se encheriam de crianças com livros a caminho da escola, homens que iam trabalhar e mulheres como ela própria que iam ao mercado ou que empurravam carrinhos de bebé, passeando aos pares ou em pequenos grupos, mesmo em manhãs frias como aquela.

      AS MATEMÁTICAS DA CANÇÃO

      — O que estamos a fazer aqui? — sussurrou Žofie-Helene a Stephan. Tinham acabado de sair de um corredor que cheirava a incenso e encontraram uma fila de adultos bem vestidos que desciam umas escadas, à espera de entrar na Hofburgkapelle. Žofie fizera exatamente o que Stephan lhe ordenara, embora se recusasse a explicar porquê: Vestira roupa elegante e encontrara-se com ele na estátua de Hércules de Heldenplatz.

      — Vamos para a fila para receber a comunhão, juntamente com as pessoas que saem das galerias superiores — explicou Stephan.

      — Mas não sou católica.

      — Eu também não.

      Žofie seguiu-o até à capela. Era surpreendentemente estreita e simples, para a capela de um palácio real; uma divisão de aspeto gótico, rodeada de balcões de onde a banda tocava e o coro cantava, mas era tudo branco. Até a vidraça situada atrás do altar só estava pintada na parte superior, algo muito desequilibrado.

      Žofie aceitou um pedaço de pão asqueroso e um gole de vinho azedo.

      — Era indigesto — sussurrou a Stephan, enquanto se afastavam do altar.

      — Suponho que, na tua igreja, sirvam bolo Sacher, não é? — replicou, com um sorriso.

      As pessoas com quem tinham descido voltaram a subir as escadas, mas Stephan ocupou um lugar num extremo da capela e Žofie esperou junto dele. Quando a comunhão acabou, guiou-a até dois lugares livres situados na parte de trás. Sentaram-se à espera que a missa acabasse e ele escreveu no seu diário: «Comunhão = indigesta.»

      Por alguma razão que Žofie desconhecia, continuaram ali sentados, mesmo depois de a missa acabar. Quase todos ficaram, embora o sacerdote se fosse embora. Devolveu a atenção ao teto, à abóbada em cruzaria sem pinturas em que o peso das ogivas repousava sobre os pilares das intercessões e o impulso se transmitia para as paredes exteriores. Se estivesse com qualquer outra pessoa que não fosse Stephan, nunca teria tolerado estar sentada numa capela sem fazer absolutamente nada, mas Stephan tinha sempre uma razão para fazer as coisas.

      — Sabes porque o teto não cai? — sussurrou.

      Stephan pôs-lhe uma mão na boca. Depois, tirou-lhe os óculos, limpou-os com o cachecol e voltou a pôr-lhos. Sorriu e, depois, tocou no colar com o símbolo do infinito.

      — Na verdade, não foi um presente do meu pai — disse-lhe ela. — Era um alfinete de gravata que ganhou na escola. O meu avô mandou transformá-lo num colar para mo oferecer quando o meu pai morreu.

      Fileiras de rapazes jovens vestidos com um uniforme de marinheiro azul e branco começaram a encher o lugar e a pôr-se em fila à frente do altar. Depois de um instante de silêncio, uma voz bonita cantou do coro, a primeira nota aguda do Ave Maria de Schubert. Na voz pura daquele rapaz, as notas gotejavam ritmicamente, para baixo e depois para cima, para voltar a descer e pousar num lugar dentro de Žofie que nem ela própria sabia que existia. À voz do rapaz, seguiu-se o coro inteiro de vozes masculinas, cujo eco ricocheteava na pedra branca do teto abobadado, rodeando-a por todas direções, misturando-se na sua mente com uma equação que passara vários dias a tentar resolver, como se fizesse parte do próprio céu. Ficou ali sentada, deixando que a música enchesse os vazios entre os números e símbolos da sua mente e, depois, ficou sentada no silêncio enquanto os outros se iam embora, até restarem apenas Stephan e ela, sentados lado a lado na capela vazia, o lugar mais cheio que alguma vez vira.

      KIPFERL E CHOCOLATE QUENTE VIENENSE

      Em Michaelerplatz, à frente da Hofburgkapelle e do palácio, estava um dia brilhante, ensolarado e frio e, por todo o lado, havia panfletos e cartazes que proclamavam «Claro!» e «Com o Schuschnigg por uma Áustria livre!», ou «Vota Sim» no plebiscito que o chanceler Schuschnigg convocara para decidir se a Áustria devia continuar a ser independente da Alemanha. Nas paredes dos edifícios e nas calçadas, tinham pintado cruzes brancas da Frente da Pátria Austríaca, o partido do chanceler. As multidões e os grupos juvenis entoavam «Heil Schuschnigg», «Heil liberdade» e «Vermelho, branco, vermelho até à morte!», enquanto os outros gritavam «Heil Hitler!».

      Žofie tentava ignorá-los a todos. Tentava agarrar-se à música e à matemática que ainda se misturavam no seu interior enquanto percorria a Herrengasse com Stephan para o Café Central. Se os gritos da multidão incomodavam Stephan, não disse nada, embora não tivesse dito nada desde que começara a música na capela. Žofie supunha que aquela melodia mudara o seu mundo de palavras, tal como mudara o seu mundo de números e símbolos. Imaginava que fora por isso que se tinham tornado tão bons amigos, embora Stephan conhecesse outros há muito mais tempo do que a conhecia, porque a escrita dele era como a matemática dela num sentido que ambos entendiam, ainda que, na verdade, não tivesse sentido.