Meg Waite Clayton

O último comboio para a liberdade


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a verdade?

      Truus esperou com paciência enquanto o chefe da estação voltava a olhar para Klara, que sorriu com doçura. A cara do homem iluminou-se.

      — Voltaremos amanhã, então — anunciou Truus. Não foi uma pergunta direta, pois não queria arriscar-se a uma negativa, mas elevou ligeiramente o tom de voz no fim da frase para deixar claro que entendia o seu dilema, que um código errado devia fazê-lo hesitar. — A minha amiga nunca esteve em Hamburgo — acrescentou. — Posso mostrar-lhe a cidade e voltaremos amanhã.

      Quando Truus e Klara se aproximavam das escadas para sair da estação, alguém agarrou na mala de Klara e disse: «Deixe-me ajudá-la com isso», assustando ambas. Também agarrou na mala de Truus e sussurrou: «O homem que está à direita ao fundo das escadas seguiu-vos desde a pensão. Será melhor irem para a esquerda ao sair da estação e darem uma volta ao quarteirão.» Devolveu-lhes as malas ao chegar ao fundo da escada e afastou-se para a direita. Truus viu-o a passar junto de um homem que lhe pareceu familiar, um homem da pensão que a abordara em referência a um possível contrabando de moedas de ouro para a Holanda; uma armadilha da Gestapo que ela sabia que devia evitar. Mesmo assim, apalpou os bolsos e lembrou-se do doutor Brisker, que lhe dera a sua «pedra da sorte». Ele também assegurara que estava a ajudá-la.

      ESCREVER ENTRELINHAS

      Stephan tapou a mãe com a manta, sentada num divã à frente da lareira, enquanto a tia Lisl, que chegara bem cedo de manhã sem o tio Michael, voltava a ajustar o volume do rádio. As cortinas estavam corridas e deixavam na penumbra as estantes de livros, que subiam até ao teto do terceiro andar, interrompidas apenas pelo corrimão que rodeava o nível superior da biblioteca, as escadas e o corrimão de latão que adorava subir antes mesmo de saber ler. Supôs que fossem as cortinas corridas que tornavam o ambiente tão inquietante, como se houvesse algo sinistro no facto de ouvir o rádio quando lá fora, em Viena, estava uma manhã invernal ensolarada.

      Tentava ler outra vez Episódio do Lago Genebra, um relato de Stefan Zweig sobre um soldado russo que um pescador italiano encontra nu numa balsa, um relato que o pai dizia que falava sobre a extinção dos valores humanos sob o mandato de homens como Hitler. No entanto, era difícil concentrar-se com o rádio ligado, com a notícia do plebiscito por uma «Áustria cristã independente» programado para dois dias mais tarde, embora Hitler já tivesse dito que era uma fraude que a Alemanha não aceitaria. «Lügenpresse», fora o que Hitler chamara à imprensa austríaca que publicasse qualquer outra coisa. Imprensa mentirosa.

      — Como se esse louco não fosse um mentiroso — disse o pai para o rádio quando Helga, que acabara de entrar com o pequeno-almoço, tropeçou na cadeira de rodas vazia da mãe e quase deixou cair a bandeja de prata. — Como é que o Hitler conseguiu convencer a Alemanha de que as suas mentiras são a verdade e de que a verdade é a mentira?

      — Aqui, senhor, na secretária? — perguntou Helga ao pai.

      — Peter — sussurrou Walter ao seu coelho —, vamos tomar o pequeno-almoço na biblioteca!

      Tomar o pequeno-almoço na biblioteca, ainda mais inquietante do que as cortinas corridas. Às vezes, levavam uma bandeja ao quarto da mãe nos seus piores momentos, mas servirem todos ali? E apenas pão preto, doce e ovos cozidos, sem salsichas ou patê de ganso. Nem sequer havia um sortido de pão kornspitz ou semmel e muito menos algum doce.

      Stephan agarrou num pedaço de pão e untou-o com manteiga e doce para disfarçar o sabor a centeio. Depois de comer tudo o que pôde, para contentar a mãe, disse:

      — Bom, vou levar a máquina de escrever para…

      — Podes escrever aqui, na biblioteca — indicou o pai.

      — Mas a mesa está cheia com as coisas do pequeno-almoço…

      — Podes usar a mesa desdobrável do canto.

      Era impossível escrever, exceto quando estava sozinho, mesmo em circunstâncias normais, e tomar o pequeno-almoço na biblioteca a ouvir Hitler a ameaçar o seu país era tudo menos normal. Na Alemanha, Goebbels garantia que toda a Áustria estava amotinada e que os austríacos estavam a pedir a intervenção dos alemães para restaurar a ordem. No entanto, do outro lado das cortinas corridas, as ruas de Viena estavam tranquilas. Um motim tranquilo, pensou Stephan. Žofie-Helene teria algum paradoxo dos dela para aquela situação.

      Supostamente, devia encontrar-se com ela à frente do Burgtheater naquela tarde. Tinha uma surpresa para ele. Sem dúvida, nessa altura, já o deixariam sair. Até o pai dizia que não havia nenhum motim em Viena, que era uma mentira que Hitler inventara para justificar o envio de soldados para um país a que não pertenciam.

      O pequeno-almoço deu lugar ao almoço, novamente, uma bandeja na biblioteca. Todos, exceto Walter, se inclinaram para o rádio, como se aquilo pudesse parar o fluxo de más notícias. Walter, expressando o mesmo aborrecimento que Stephan partilhava, começou a fazer girar o globo terrestre do pai com cada vez mais velocidade. Ninguém o repreendeu.

      Stephan abriu a mesa desdobrável do canto e pôs a máquina de escrever em cima dela. Introduziu uma folha em branco e imaginou uma cena como a que se refletia no espelho pendurado no canto: Uma lareira acesa numa biblioteca de dois níveis, com livros, corrimões e escadas de mão, mas com as cortinas abertas. Pôs uma rapariga jovem com os óculos sujos no topo de uma das escadas, à procura de um livro de Sherlock Holmes. Começou a escrever a página do título. «O PARADOXO…»

      — Agora não, querido — pediu a mãe. — Não ouvimos bem.

      Continuou a escrever. «DO MENTIROSO.» Com a esperança de que a reprimenda fosse dirigida a Walter e ao globo terrestre.

      — Stephan — repreendeu-o o pai. — Walter, tu também.

      Contrariado, Stephan abandonou a máquina de escrever e selecionou um livro da estante das crianças. Depois, sentou Walter ao seu colo. Leu The Incredible Adventures of Professor Branestawm em voz baixa, as desventuras divertidas de um professor despistado que inventa caçadores de ladrões e máquinas para fazer torradas. Contudo, Walter começou a retorcer-se e Stephan depressa se aborreceu de ler em inglês. Fora por essa razão que a tia Lisl lhes trouxera aquele livro da sua última viagem a Londres, porque o pai queria que Walter e ele melhorassem o seu inglês.

      — Podia levar o Walter ao parque — sugeriu, mas o pai mandou-o calar-se.

      Stephan olhou para o relógio quando Helga serviu um jantar leve na biblioteca. Devia ligar a Žofie-Helene para lhe dizer que não conseguiria encontrar-se com ela, mas ainda tinha um pouco de tempo. Devorou parte do jantar — ouvindo como Hitler exigia ao chanceler Schuschnigg que cedesse todo o poder aos nazis austríacos ou enfrentaria a invasão — e, depois, voltou a sentar-se com a máquina de escrever. Poderia escrever enquanto comiam. Poderia capturar a cena: Uma rapariga com os óculos sujos servia-se de um prato de comida e sentava-se junto da lareira, como a tia Lisl fizera. O pai ofereceu um prato à mãe, antes de se servir. Decidiu que, afinal, as cortinas da divisão estariam corridas.

      Tap, tap, tap. Tentou escrever sem fazer barulho — de Stephan Neuman —, mas a campainha do fim da linha misturou-se com as vozes do rádio.

      — Stephan — queixou-se a mãe.

      — Deixa que leve essa porcaria para outra divisão, Ruchele! — exclamou o pai, o que surpreendeu Stephan, pois tinha a certeza de que nunca ouvira o pai a falar assim com a mãe.

      — Herman! — repreendeu-o a tia Lisl.

      — Acho que foste tu que insististe que as crianças ficassem na biblioteca, Herman — indicou a mãe, com doçura.

      Quando é que aquelas bochechas tinham aparecido na cara do pai? E as rugas nos olhos, na boca e na testa? A mãe estava doente desde que Stephan se lembrava, mas a deterioração do pai era nova e alarmante.

      — Stephan, podes usar o meu escritório — declarou —, mas fica em casa. Poupa a tua mãe de ter de se preocupar contigo. E leva