Meg Waite Clayton

O último comboio para a liberdade


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      — Imagina, Žofe, se eu conseguisse escrever uma coisa dessas — replicou.

      Para além da vitrina dos bolos, no outro extremo do café, os seus amigos estavam sentados em torno de duas mesas juntas do lado das estantes da imprensa, já reunidos à espera de Stephan.

      — Mas escreves peças de teatro, não música — indicou Žofie.

      Stephan deu-lhe um empurrão suave no ombro, como costumava fazer ultimamente. Žofie sabia que o fazia a modo de brincadeira, mas, mesmo assim, adorava sentir a sua carícia.

      — Tão asquerosamente brilhante, tão tecnicamente correta… E tão abismalmente errada — redarguiu. — A música não, idiota. Uma obra que emocionasse as pessoas dessa forma.

      — Mas…

      «Mas consegues fazê-lo, Stephan.»

      Žofie não soube porque parou antes de dizer aquelas palavras em voz alta, tal como não sabia porque não dera a mão a Stephan na capela. Talvez pudesse ter-lhe dito lá, no silêncio depois da música, como lhe falara do colar. Ou talvez não. Era avassalador aperceber-se de que conhecia alguém que poderia fazer algo tão mágico como aquilo algum dia, se continuasse a entrelaçar palavras, a criar histórias e a ajudar os outros a torná-las realidade. Era avassalador pensar que as suas obras talvez acabassem por se representar no Burgtheater algum dia, que as suas palavras se recitariam à frente de um público que riria ou choraria e que, no fim, se levantaria e aplaudiria, como o público fazia nas melhores peças, aquelas que os arrancavam de um mundo e os deixavam noutro que nem sequer existia realmente. Ou existia, mas só na imaginação dos que viam a peça, só durante aquelas poucas horas na escuridão. O paradoxo do teatro: Real e irreal ao mesmo tempo.

      * * *

      Stephan queria pedir a Dieter para se mudar para o banco do fundo para poder sentar-se junto de Žofie, para continuar perto dela e da música do coro e do sentimento, da esperança que surgira no seu interior ao partilhar aquela música com ela. Se não tivesse vindo com ele à leitura da sua peça, teria agarrado no seu diário e teria ido diretamente da capela para o Café Landtmann ou melhor ainda, para o Griensteidl, onde ninguém o interromperia. Teria afundado os dedos nas palavras, para melhorar alguma das suas peças ou para começar uma nova. Porém, Dieter levantou-se para segurar a cadeira a Žofie. Tinham combinado encontrar-se para ler a peça de Stephan. Todos deviam conseguir ouvir por cima do barulho: A mesa do lado estava a meio de uma discussão acalorada sobre um exemplar da Neue Freie Presse que a tia Lisl lia às vezes e os jogadores de xadrez do outro lado também discutiam. Todos no café pareciam estar a especular sobre se a Áustria iria para a guerra com a Alemanha ou quando seria. De modo que Stephan ocupou o seu lugar habitual e pediu kaffee mit schlag e strudel de maçã. Depois, pediu ao empregado de mesa para trazer para Žofie — que dissera que não tinha fome — um kipferl e chocolate vienense, uma extravagância para ela que não era para ele e para o resto dos seus amigos.

      UM CÓDIGO ERRADO

      Os elétricos estavam tão vazios como as vias de comboio que passavam por baixo da ponte para a estação de Hamburgo, tão vazios como a própria estação de madrugada. No trajeto da pensão, Truus e Klara van Lange só se encontraram com um soldado, um jovem sargento que se virou para olhar para Klara. Truus sabia que era uma dificuldade que Klara chamasse tanto a atenção, que fosse tão memorável. Contudo, até as maiores dificuldades podiam transformar-se em vantagens. E tinham trinta órfãos para ir buscar, muitas mais crianças do que Truus conseguiria gerir sozinha.

      — Vais fazê-lo lindamente, prometo-te — garantiu a Klara, quando passaram por baixo da suástica enorme colada à fachada horrível da estação. Era de vidro por cima? Estava tão sujo que era difícil de saber.

      Desceram umas escadas sujas até uma plataforma suja, limparam um banco com um lenço e depositaram as malas de viagem junto delas em vez de as deixar no chão, que estava ainda mais sujo.

      — Bom, isto é o que gostaria que fizesses — redarguiu Truus. — Haverá um soldado a fiscalizar o embarque no nosso vagão. Mostra-lhe o teu bilhete e pergunta-lhe em holandês se esse é o teu lugar. Talvez possas expressar confusão por não estares na primeira classe. Mas não demasiada confusão. Não queremos que te leve para um vagão melhor e me deixes sozinha com trinta crianças. Se não falares holandês, finge que falas alemão com muita dificuldade, o suficiente para fazer com que se sinta atraente. Entendes?

      — Não temos papéis para as crianças? — perguntou Klara, indecisa.

      — Temos, sim, mas quanto menos perguntas se fizerem, melhor.

      Os vistos de entrada na Holanda eram reais, graças ao senhor Tenkink. Os vistos de saída da Alemanha podiam sê-lo ou não. Truus preferia pensar que eram.

      — Já te disse que vais fazê-lo muito bem — garantiu a Klara —, mas, desta primeira vez, será mais fácil fazê-lo na tua própria língua.

      Aquela primeira vez, que bem poderia ser a última. Tenkink conseguira os vistos de entrada, mas, com a nova lei — e a fronteira já fechada — não haveria mais. Talvez Joop tivesse razão. Talvez o melhor que podia fazer fosse acolher algumas das crianças, dar-lhes um lar.

      — O medo pode afetar as mentes mais privilegiadas — disse a Klara.

      Passado um instante, um chefe de estação aproximou-se. Parou à frente delas. Era um homem idoso com uma cara perturbadora, redonda, branca e tosca. O medo de Klara notava-se na sua atitude estática, como um instinto animal para passar despercebida, mas não importava. Ao fim e ao cabo, todos tinham medo na Alemanha ultimamente.

      — Estão à espera de uma encomenda? — perguntou o homem.

      — Uma entrega, sim — confirmou Truus, com suavidade.

      — O comboio está uma hora atrasado — informou o chefe da estação.

      Truus agradeceu pela informação e prometeu esperar.

      — Parece um boneco de neve — sussurrou Klara, com um sorriso, quando o homem se afastava.

      Truus recordou a imagem dos seus pais em Duivendrecht, a cara da mãe na janela enquanto a bola de neve do menino refugiado escorregava pelo vidro, a mãe a rir-se das crianças que se riam junto do boneco de neve que Truus as ajudara a fazer. Era verdade que o chefe da estação se parecia um pouco com um boneco de neve, a alcunha condizia. E, além disso, dizia muito de Klara van Lange. Estava assustada, mas não suficientemente assustada para não conseguir usar o humor para enfrentar a situação.

      — Talvez te sintas menos nervosa se responderes ao chefe da estação da próxima vez que vier, Klara — sugeriu. — Perguntará se estamos à espera de uma encomenda e devemos responder: «Uma entrega, sim.»

      — Uma entrega, sim — repetiu Klara.

      Passado um instante, um chefe da estação voltou a aproximar-se. Truus esperou que estivesse suficientemente perto para distinguir o seu rosto por baixo do chapéu. Não era o boneco de neve.

      — Estão à espera de uma encomenda? — perguntou.

      Truus, tocando inconscientemente no rubi que tinha por baixo da luva, fez um gesto com a cabeça a Klara.

      — Uma encomenda, sim — respondeu Klara.

      — Uma entrega, sim — corrigiu Truus.

      O homem olhou, nervoso, em torno da estação, mas manteve-se firme. Uma pessoa que estivesse a observá-lo de longe não teria percebido a preocupação.

      — Uma entrega, sim — repetiu Truus.

      Truus teria querido enviar uma prece silenciosa, mas não podia permitir a distração.

      Os sinos de Hamburgo começaram a dar as seis.

      — Receio que o caos na Áustria tenha feito com que a entrega de pacotes seja impossível esta manhã — disse o homem,