Melina Galete

Da verdadeira Índia


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a colocar coentro em tudo.

      Ainda estou no meu segundo dia de viagem, pode ser que eu esteja apenas irritada por ter passado quase quarenta horas entre aviões e aeroportos. Hoje vou ao Templo. Espero encontrar por lá a tão procurada paz de espírito. Espero também ver meditação e mantras alegremente cantados. Dedicarei um capítulo ou subcapítulo a essa experiência carregada de paz, quando eu voltar da viagem. Para quem está a ler agora, a viagem já acabou e o texto já existe. Mas não se adiante para saber se eu encontrei ou não a paz buscada (informação que eu, enquanto escrevo, ainda não possuo). Não se adiante. Primeiro veja os relatos que se seguem, sobre o casamento.

      O casamento

      •

      Minha preparação

      Fui convidada para um casamento tradicional indiano. Seria uma experiência inédita para mim. Já fui a muitos casamentos, quase tanto quanto a funerais, mas em todos a noiva estava de vestido branco e a festa durava apenas um dia. Contudo, eu não pensava que fosse tão incomum a presença de estrangeiros em casamentos como aquele. Percebi que eu estava enganada já no primeiro dia, quando a equipa de reportagem do canal local apareceu para entrevistar os estrangeiros presentes na festa.

      As dúvidas começaram a surgir antes da viagem. E a primeira foi em relação ao presente: o que se deve dar aos noivos indianos? Deve-se dar o presente aos noivos ou apenas à noiva? Em qual dos muitos dias de celebrações o presente deve ser entregue? Tentei descobrir, com pesquisas na internet, e tive ainda mais a certeza que não é mesmo comum a presença de estrangeiros em casamentos tradicionais por lá. Quase não havia informação. As poucas informações que encontrei eram sobre casamentos de indianos que viviam no Reino Unido.

      Decidi respeitar a lógica brasileira e portuguesa: encomendei uma colcha de cama. Mas não uma qualquer. Fui até à cidade de Guimarães, que fica mais ou menos a quinze quilómetros de distância de onde vivo, e encomendei uma colcha preta com caravelas bordadas na cor dourada. Fizeram na cor branca. Pensei em presentear Sridevi com algo que a fizesse lembrar que nos conhecemos e compartilhamos casa em Portugal, embora em Aveiro, e não Guimarães. Até pensei em levar ovos moles, o doce típico da região, mas teriam estragado com o calor indiano ainda no trajeto do aeroporto até a primeira casa em que fiquei hospedada.

      A colcha ficou pronta apenas um dia antes da viagem. Naquele momento, eu já tinha o presente, os vistos, a autorização do pai da minha filha no passaporte, trinta e quatro mil rupias indianas e expetativas. Embarcamos. Ou quase. Era um avião.

      Antes do casamento

      Os noivos não se conheciam. Também não se escolheram um ao outro. A tradição hindu manda que o pai escolha as noivas e noivos para as filhas e filhos. E esses aceitam, na maior parte das vezes. No entanto, Sridevi ficou órfã de pai aos dezasseis anos. Talvez ela tenha conseguido estudar na Europa e dividir apartamento comigo e outras tantas flatmates devido a essa morte prematura. Com a morte do pai, o responsável por tomar as decisões da sua vida passou a ser Sandeep, o seu irmão, que era dois anos mais velho. Ele sempre deixou claro que não permitiria que ela casasse com alguém que vivesse na Índia. Portanto, o trabalho seria ainda maior. Teria que encontrar um indiano que pertencesse à mesma casta que eles, que tivesse mais ou menos a mesma idade que Sridevi, com habilitações escolares semelhantes ou superiores às dela, e que morasse fora daquele país. Especificamente, nos Estados Unidos da América. Eram essas as exigências do irmão.

      Sandeep argumentava que Sridevi já estava acostumada a viver fora e a governar a própria vida, com as devidas consultas a ele antes de tomar as decisões. Para Sandeep, os homens que viviam na região de Hyjabad iriam trancá-la em casa e impedir que ela trabalhasse ou continuasse a estudar. Ele sempre procurou o melhor para a irmã. Talvez o pai, se fosse vivo, faria com que ela casasse com alguém da região. Talvez ele nunca tivesse permitido que ela vivesse na Europa.

      Outra exigência de seu irmão era que ela não casasse tão nova. Primeiro deveria terminar, no mínimo, o doutoramento. Na Índia existe uma lei que proíbe o casamento quando envolve menores de idade, grupo que lá abrange as pessoas até os dezoito anos. Contudo, não é o que ocorre na prática. Ainda é comum o casamento de adolescentes e, por vezes, de crianças com menos de dez anos de idade. A mãe de Sandeep e Sridevi não teve escolha. Casou-se aos doze anos – antes da primeira menstruação – com um homem de vinte e quatro. Foram viver juntos logo após o casamento. Em pouco tempo, ela estava grávida. Não era esse o destino que Sandeep queria para a irmã. Sridevi, contudo, assim que a conheci, tinha vinte e cinco anos e já estava aflita por estar a ficar velha demais para o casamento.

      Ela chegou aos trinta e a procura pelo marido já durava um ano. Não era fácil procurar alguém que tivesse concluído o doutoramento, vivesse nos Estados Unidos, tivesse entre trinta e trinta e três anos e ainda pertencesse à mesma casta que eles, uma das muitas que preenchem as pernas de Brahma – os Vaixás. No entanto, poucos dias antes da sua comemoração de trinta e um anos, sua família encontrou um pretendente. Arjun havia completado a mesma idade há um mês, não terminara o doutoramento, mas estava a cursá-lo, vivia nos Estados Unidos há muitos anos e compreendia a independência de Sridevi, na medida do possível.

      Ao contrário do que aconteceu na época em que a mãe de Sridevi casou, a noiva teve a oportunidade de ver a foto do pretendente e decidir se aceitava ou não. Antigamente, era enviada uma foto no formato 3x4 apenas quando o contrato já estava assinado entre as famílias. São os ventos da mudança que já sopram na Índia.

      As conversas iniciaram. O dote foi oferecido e a família de Arjun aceitou sem contestar. Muitas vezes há uma contraproposta, em que a família do noivo solicita que paguem mais. Não aconteceu nesse caso. O casamento é um contrato em qualquer sociedade. Algumas disfarçam com amor, mesmo quando exigem a comunhão parcial de bens. Na Índia, não há cláusulas que tratam do divórcio. Ele existe, mas é impensável quando se casa.

      Contudo, existem outras conversas que devem ser esclarecidas entre as famílias, antes que o contrato matrimonial seja assinado. No caso de Sridevi e Arjun, ficou combinado que logo após o casamento ela voltaria para a Austrália para terminar o pós-doutoramento, enquanto ele voltaria para os Estados Unidos para trabalhar. Ficou estabelecido também que ela poderia trabalhar nos Estados Unidos, local em que o casal vai morar após a conclusão do pós-doutoramento de Sridevi. Embora exista uma cláusula anterior que anula essa, na qual é estabelecido que o marido poderá consentir ou proibir qualquer aparição da esposa no que concerne à vida em sociedade.

      Após o contrato assinado pela família, chegou a hora do contacto. Os noivos tiveram a permissão de trocar mensagens por Whatsapp. Estava iniciado o namoro virtual. Não sei quanto a Arjun, mas a minha amiga apaixonava-se a cada dia, como uma adolescente, e criava cada vez mais expetativas para o casamento, que havia sido marcado para seis meses depois.

      Até que dez dias antes do casamento eles conheceram-se pessoalmente. Era o dia do noivado. Dia em que são descobertos os pequenos logros, algo comum e bem aceito, desde que sejam mesmo mínimos. Ela estava mais baixa do que na foto – onde aparecia com um vestido bem longo, mas escondido por baixo dos panos havia um banco de madeira. Ele estava um pouco mais gordo. Mas não houve reclamações. E caso reclamassem, já não era fácil voltar atrás, só à custa de muito dinheiro. Portanto, ficaram noivos. Apenas uma semana separava aquele dia do casamento.

      Primeiro dia: Henna e música

      •

      Eu já estava na Índia há seis dias quando tive que acordar às cinco horas da manhã – e dessa vez não era para fazer yoga – para ir até outra cidade, onde aconteceriam os rituais e as cerimónias do casamento. No dia em que cheguei, fui para a casa de Sandeep e fiquei hospedada por lá. No dia seguinte, fui a um Templo pela manhã e a visita durou até à tarde. À noite, Sridevi, o irmão, e os outros habitantes da casa foram para a tal cidade, deixando-me sozinha com minha filha.

      Todos os dias pela manhã aparecia a empregada, com a sua filha de doze anos, que também cuidava da limpeza da casa. No terceiro dia fui levada a um