Melina Galete

Da verdadeira Índia


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na função de receber os convidados. Dessa vez ele anunciava que participaríamos da “Sangeet Ceremony”, a festa da música. Eu esperava por músicas mais suaves. Nos primeiros dez minutos, percebi que a música popular atual da Índia não deixa nada a dever para as mais tocadas nas rádios brasileiras e portuguesas. Eu esperava também ver as primas e tias de Sridevi dançarem. Não vi. A festa estava organizada para nós. Fomos convidados ao palco diversas vezes. Tentaram nos ensinar a dançar como eles. Não conseguimos aprender. Eu sugeri que dançássemos um samba, mas devido à supremacia espanhola, dançamos “Macarena”, que, aliás, era conhecida pelos indianos. Ao final, todos foram convidados a subir ao palco para dançarem juntos. Quase todas as mulheres permaneceram sentadas. Por lá, até na dança os homens fazem questão de mostrar superioridade.

      Segundo dia: o banho da noiva

      •

      No segundo dia de festa, sétimo de viagem, acordei cedo novamente, mas não por vontade própria. Parece um hábito local. Acordaram-me antes das sete horas da manhã. Serviram-me para o pequeno-almoço uma espécie de pão, por vezes semelhante a bolo, feito com farinha de lentilha. Para acompanhar, um creme também de lentilha com vinte e duas especiarias, entre elas, pimenta de diversos tipos. Meu estômago já mostrava sinais de desgaste, mas eu não possuía comida escondida na mala e não havia passado por nenhum lugar em que pudesse comprar algo mais ocidentalizado.

      Fomos – a pé – para a casa da mãe da noiva. Pelo caminho, tentei desafiar a regra de olhar para o chão. Recebi dois sorrisos que me fizeram gelar por dentro. Olhei para o chão novamente. Percebi que um homem olhava muito para a minha filha. Com medo, apressei o passo.

      Enquanto andávamos, sentimos que as pessoas nos olhavam mais do que no dia anterior. Alguns olhavam para o jornal que tinham em mãos, depois para nós e em seguida para o jornal novamente. Ao chegarmos, antes de entrarmos na casa, um dos tios da noiva estava parado em frente ao portão e segurava um jornal para mostrar que estávamos na primeira página: “Estrangeiros participam de ritual de casamento em que tradicionalmente apenas a família deveria participar”, ele traduziu. Não compreendi se era um elogio ou não. Mas reparei que saí bem na foto.

      Ao chegarmos ao local da festa, Ganesh aguardava-nos e informava que ali ocorreria o “Bridal Shower”. No Brasil, há um evento que precede os casamentos e recebe o nome de chá de panela. Nos Estados Unidos e em outros países de língua inglesa esse evento não é o chá, mas o shower, ou seja, duche, mas também pode ser interpretado como banho. Assim como não se faz chá entre as brasileiras, também não há banho entre as norte-americanas. É apenas o nome da despedida de solteira. Na Índia, contudo, ocorre realmente um banho.

      Ao chegarmos ao quintal, o mesmo da véspera, havia uma espécie de banheira a imitar uma flor, com um banco no meio, que substituía o miolo. Em volta estavam espalhadas muitas pétalas de diversas cores e nove bacias douradas. Cada uma cheia até o topo com água e, por cima, mais pétalas. Cinco com pétalas na cor rosa e quatro na cor amarela. Não demorou muito e a noiva ocupou o banco-miolo. Ela usava um sári amarelo quase da mesma cor do banco e, como pude constatar depois, da cor da água misturada com especiarias.

      As tias e primas começaram a preparar o banho. Em cada bacia foi adicionada uma especiaria diferente e, logo depois, um vidro de óleo essencial. A mãe, a irmã e a cunhada de Sridevi pegaram as bacias – cada uma ficou encarregada de três – e despejaram todo o conteúdo em cima da noiva, enquanto as outras mulheres repetiam palavras que se assemelhavam a orações decoradas. Nós, os forasteiros – agora também julgados pelos locais – apenas assistimos, enquanto os macacos gritavam entusiasmados em cima do muro. Talvez pela forte mistura de odores.

      Após o banho, uma das empregadas apareceu com outra bacia dourada, cheia, também até o topo, de pó de curcuma, e adicionou um pouco de água. Uma a uma, as mulheres da família colocaram a mão no conteúdo dessa bacia. Cada vez que mergulhavam os dedos, a mistura transformava-se em uma pasta dourada. Uma curcuma pura, sem os conservantes adicionados para aguentarem a viagem até o Ocidente. A curcuma foi plantada e colhida no quintal e o pó foi extraído de maneira artesanal, pela mãe da noiva. Essa mistura, que agora já era uma pasta, era esfregada no rosto e nos braços da minha amiga.

      Foi então que Sridevi mais uma vez quis alterar as regras da tradição. Levantou do banco-miolo e declarou que queria convidar seus amigos estrangeiros, inclusive os homens – e esse foi o choque maior – para esfregarem as especiarias em sua pele. Era tudo muito erótico. Por esse motivo, talvez, durante séculos as pessoas habilitadas a esfregar as especiarias eram apenas as mulheres mais próximas – mães, irmãs, cunhadas, primas e tias. Nem as sobrinhas, por serem normalmente crianças, tinham permissão para aquele ato carregado de sensualidade. Contudo, ela convidou-nos.

      Fomos, um a um, até à flor-banheira. Antes, tivemos que tirar os sapatos. Ao lado dela, mergulhamos a mão direita na pasta de curcuma e esfregamos, meio desajeitados, alguns em seu braço e outros em seu rosto. Duas tias mais velhas retiraram-se do ambiente. Pareciam ofendidas. Enquanto eu esfregava a curcuma por baixo do queixo da minha amiga, senti como se estivesse a prepará-la para ser comida. Já estava imersa em uma água com diversas especiarias e agora recebia o toque final. No dia seguinte ela estaria pronta para o noivo. Uma iguaria indiana.

      Chegou a hora do almoço e o cheiro de Sridevi despertou a minha fome. Mesmo com o estômago cada vez mais danificado, nunca comi com tanta vontade desde o primeiro dia. Após o almoço, fomos para o centro da cidade negociar sáris para o dia seguinte. Estávamos famosos. Todos queriam tirar fotos nossas. Duas mulheres pediram para que autografássemos o jornal. Contudo, tivemos que voltar para casa às pressas, pois nossa fama não era positiva para todos. Alguns acusavam-nos de quebrar as tradições. Sorrimos. Não compreendemos telugu. Mas Preeti empurrou-nos para o “autocarro”, muito aflita, e o condutor guiou a toda velocidade para o hotel e depois para a rua em que eu, Maria Clara e Jack estávamos hospedados. Ele na casa dos rapazes e nós na casa das raparigas.

      Mais tarde, descansávamos ao lado de uma imagem de Lord Krishna, com a televisão ligada, quando vi a cena que havia ocorrido mais cedo. Fomos filmados a correr das ruas para o “autocarro”, às pressas, e já éramos notícia mais uma vez. Eu estava na sala apenas com a minha filha. Perguntei a Krishna o que o repórter havia falado, mas ele apenas sorriu.

      Ao fim da tarde, fomos novamente a pé até o local da festa, o mesmo das anteriores. Eu olhava para baixo, enquanto ouvia a mesquita a chamar para a oração das seis. Todos olhavam para nós, exceto os quarenta e dois porcos que vimos pelo caminho, nos oitocentos metros que separavam uma casa da outra.

      Ao chegar, vi um Ganesh cansado e um pouco desatento. Ele ostentava o mesmo convite da manhã – “Bridal Shower” – mas com um novo horário – 6pm. Não fomos para o quintal. Dentro da casa ocorria um ritual em que apenas as mulheres da família participavam. Dessa vez ficamos de fora. Recebemos uma fita banhada em curcuma, cujo pendente era uma folha de mangueira enrolada. Prenderam em nossos braços como pulseiras. Para trazer bênçãos, disseram.

      Aparentemente tudo trazia bênçãos. Desde o dia anterior que, mal entrávamos na casa, colocavam um ponto vermelho na nossa testa. O ponto – chamado bindi – é feito com sindur, preparado normalmente com uma mistura de açafrão e suco de limão. Reparei que, entre os estrangeiros, apenas eu e as duas espanholas mais velhas, mãe e tia de uma outra que havia estudado com Sridevi, receberam uma segunda marca de sindur, no começo da linha divisória do cabelo. Explicaram-nos que aquela marca era apenas para mulheres casadas. Suponho que por estarmos acompanhadas das filhas e, no caso da tia, por ter mais de cinquenta anos, deduziram que só poderíamos ser casadas. Mas não éramos.

      Sentámo-nos na varanda, sem sapatos, ao lado dos músicos. Eram dois senhores que deveriam ter mais de setenta anos. A música, diziam eles, era para facilitar a chegada dos bons espíritos no ritual que ocorria dentro da casa. Quando o ritual acabou, fomos para o quintal jantar. Meu estômago rejeitava cada vez mais a mistura de especiarias. Fiquei pelos doces. A flor-banheira havia sido substituída por um trono dourado com estofado vermelho. A noiva utilizava um sári nas cores rosa e azul celeste.

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