Melina Galete

Da verdadeira Índia


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um amigo de Sridevi muito simpático. Minha amiga pagou tudo, inclusive o almoço.

      Foi nesse dia que percebi que não é muito comum a presença de estrangeiros naquela localidade. A todo o momento alguém parava para tirar fotos nossas. As crianças queriam tirar selfies com a minha filha, as mulheres comigo e os homens com Jack. Foi nesse dia também que percebi que a cidade em que eu estava tinha quase tantos muçulmanos quanto hindus. E que as mulheres muçulmanas, principalmente as recém-convertidas, adaptavam a religião à sua maneira. Utilizavam o niqab (embora os indianos chamassem de burca), mas penduravam vários enfeites na parte de trás do pano e utilizavam um véu colorido na frente.

      Ao final do quarto dia, chegaram os outros convidados não indianos. Todos, em algum momento, estudaram, trabalharam, ou dividiram casa com Sridevi, na Europa ou na Austrália. Agora, éramos duas brasileiras, um australiano, um italiano, um francês, seis espanholas e um espanhol. O novo grupo foi para um apartamento alugado através da plataforma Airbnb, em uma rua quase paralela à que estávamos.

      No quinto dia encontramo-nos todos pela manhã para um passeio pela cidade. Sridevi informou-nos de que havia alugado um autocarro para a ocasião.

      Quando ele chegou, constatei que pouco lembrava os autocarros brasileiros e portugueses. Parecia uma carrinha velha um pouco alargada e muito sufocante. Entrámos. A essa altura meu estômago, sempre tão recetivo, já dava voltas com a comida. Mas aceitei mais um pequeno-almoço com pimenta, curcuma, canela, cravinhos, asafoetida e cardamomo, tudo misturado com muita lentilha.

      No sexto dia, portanto, acordei às cinco da manhã para deslocar-me à cidade em que ocorreria o casamento e também cidade onde nasceu minha amiga e toda a sua família. No caminho, vi muitas vacas magras andando pelas ruas, muita pobreza e muito lixo espalhado, vendedores ambulantes, mendigos, animais mortos na berma e pessoas que surgiam do nada para atravessar. Em quatro horas de viagem, não vi nenhuma passagem pedonal. As malas foram amarradas em cima do “autocarro” e pareciam desafiar as leis da gravidade. Caíram duas vezes pelo caminho.

      Quatro horas depois, chegamos à pequena cidade de Warionga. Pequena quando comparada às outras cidades indianas. Em Portugal, seria a segunda maior. Perderia apenas para Lisboa. O aspeto, contudo, era mesmo de cidade pequena, pelos subúrbios, e de uma cidade grande, mas pobre e abandonada, no centro.

      Os primeiros dias de um casamento indiano servem para preparar os noivos para a cerimónia. Como éramos convidados da noiva, participaríamos apenas da preparação dela. Em outra cidade, o noivo também receberia os banhos de especiarias por parte da sua família.

      Logo à entrada, fomos recebidas por uma estátua de Ganesh. O deus com cabeça de elefante estava decorado com colares de flores nas cores laranja e amarela e informava, através de um cartaz, que participaríamos do ritual do Mehendi, a pintura do corpo com henna. A pintura é feita principalmente nas mãos e nos pés e algumas vezes estende-se até os braços. Uma tia da noiva explicou-me que muitos indianos utilizam a henna apenas para seguir a tradição, mas não sabem que a aplicação tem a finalidade de acalmar a noiva e, por esse motivo, é aplicado em partes do corpo onde localizam-se terminações nervosas. O encarte que recebemos com as opções para escolher que pintura queríamos nos braços era dividido em duas partes: árabes e indianas.

      Estava tudo muito colorido, com flores por todos os lados. Até um macaco apareceu sem ser convidado – para o grande susto dos europeus e do australiano. Das brasileiras também, claro. Estávamos acostumadas com os pequenos saguis que andam pelos fios das companhias de eletricidade em Niterói. Mas aquele macaco devia ter um metro de altura.

      Para a nossa surpresa, apareceram também jornalistas com muitas câmaras. Perguntaram se poderiam entrevistar-nos. A curiosidade era sobre a presença de estrangeiros em um casamento tradicional. Estavam ainda mais curiosos com a nossa participação na preparação da noiva, ritual normalmente realizado apenas pela família.

      Cada mulher – mãe, irmã, tias, primas e cunhadas – possui uma função nos rituais. Nós participámos como se fôssemos primas e primos da noiva. Os homens que lá estavam – um australiano, um espanhol, um italiano e um francês – decidiram também utilizar alguns dos adereços reservados para as mulheres, ao que a noiva concordou prontamente. Percebemos então que essa era a maneira que ela tinha para demonstrar à família que tradições podem ser mudadas, mesmo que por outro lado ela estivesse preparando-se para uma das tradições mais antigas do hinduísmo: o casamento arranjado.

      A primeira a ter as mãos e os pés pintados foi a noiva. Eu fui a segunda. Nesse momento deparei-me com mais uma cena inusitada. A mulher que sentou-se à minha frente, com os instrumentos de aplicação já carregados com henna, utilizava burca. Uma burca cheia de enfeites dourados e com um véu cor-de-rosa na frente, mas ainda assim uma burca. Soube depois que ela era uma vizinha da família e há muitos anos que era convidada aos casamentos locais para fazer as tatuagens de henna. Há um ano e meio ela havia se convertido ao Islão, o que não a impediu de continuar a aceitar os convites para as festas.

      Ela não falava inglês, mas perguntou minha opinião diversas vezes e eu concordei sempre. Ao final de vinte e dois minutos, eu tinha mãos, dedos, unhas e braços pintados com uma grossa camada de henna, que parecia terra. Ninguém me explicou que sairia e permaneceria apenas a marca – a tatuagem. Eu percebi quando lavei as mãos meia hora depois. Eram flores, traços e gotas. A noiva teve flores e letras: o nome de Arjun tatuado. Ele, mesmo distante, começava a deixar a sua marca.

      A cerimónia decorria tranquilamente quando chegou a hora do almoço. Até aquele dia, eu estava em uma cidade com muitos centros comerciais. Já havia comido em restaurantes de condições higiénicas duvidosas – mas de comida saborosa – e sempre tive a opção de comer com talheres, no entanto, eu optava por comer com as mãos, como eles. Naquele momento eu não tive escolha. Fui obrigada a comer com as mãos. Já não foi tão saboroso. Quando era uma opção parecia divertido. Mas agora não existiam talheres. Foi quando comecei a sentir-me cada vez mais cercada por aquele modo de vida tão distinto do que eu estava habituada.

      A comida era vegetariana, pois o ritual daquele dia exigia isso. Comemos curry de feijão verde, arroz basmati com pimentas e especiarias, quiabo torrado com amendoins e molho de iogurte. A bebida – lassi – era o mesmo molho, com água acrescentada. Aquele já era o meu sexto dia em terras indianas. O cheiro da comida começava a tornar-se enjoativo. Eu evitava utilizar as casas de banho. Na outra cidade eu tinha a opção de utilizar uma sanita à maneira ocidental e um pequeno duche para limpar-me (embora eu sempre carregasse um rolo de papel higiénico na bolsa). Pude constatar ainda nesse dia que ali, muitas vezes, a única opção era um buraco, que os locais chamavam indian style, e um balde com água.

      Após o almoço, saímos para fazer o check-in no hotel. Eu já estava ansiosa por esse momento. Privacidade e casa de banho, provavelmente com sanita e duche – que também não era comum por lá. Fiquei surpresa ao saber que, de todos os estrangeiros, eu fui escolhida para ficar hospedada na casa dos tios de Sridevi. Eu, minha filha e Jack. Ele ficaria na casa ao lado, onde viviam os primos. E eu na casa onde vivia uma prima. Rapazes para um lado, raparigas para o outro. E privacidade para longe. Na casa havia duas casas de banho. Uma indian style e outra com uma sanita, que logo ficou entupida.

      Tivemos verdadeiras experiências indianas. Havia um duche, mas como nunca foi utilizado, provavelmente estragou por falta de uso. Já era o nosso sexto dia com banhos com água de balde.

      O tempo era pouco, ao contrário das festas. Arrumámo-nos às pressas para voltar à casa da mãe de Sridevi, para a segunda festa do primeiro dia. Os que ficaram no hotel continuaram a usufruir do luxo de se deslocar em um “autocarro”. Eu, Maria Clara e Jack fizemos o percurso a pé. Pelo caminho, vimos duas mesquitas e uma igreja que ainda não sei explicar se era católica ou protestante. Certamente era cristã, a julgar pela cruz no alto. Cruz, aliás, na cor roxa. Assim como toda a igreja.

      Por onde passávamos, todos olhavam para nós. E foi quando Preeti, a prima da minha amiga que me hospedava, avisou-me para andar com os olhos postos no chão. Segundo ela, se eu olhasse para a frente significaria que eu estava disponível e correria o risco de ser desejada por algum daqueles homens. E caso