chamado Axel Brünner, ficassem em segundo lugar nas eleições gerais de janeiro. Aparentemente, a extrema-direita estava em franca ascensão generalizada.
O seu aumento de popularidade na Europa Ocidental fora alimentado pela globalização, pela incerteza económica e pela composição demográfica do continente, que mudava a olhos vistos. Atualmente, os muçulmanos constituíam já cinco por cento da população europeia, pelo que um número crescente de europeus nativos via o Islão como uma ameaça existencial à sua identidade cultural e religiosa. A raiva e o ressentimento, em tempos contidos ou escondidos do espaço público, percorriam, agora, as veias da Internet como um vírus. Os ataques a muçulmanos tinham aumentado drasticamente, tal como as agressões físicas e os atos de vandalismo contra judeus. Efetivamente, o antissemitismo na Europa atingira níveis que não eram vistos desde a Segunda Guerra Mundial.
— O nosso cemitério no Lido foi novamente vandalizado na semana passada — disse o rabino Zolli. — Lápides tombadas, suásticas… o costume. Os meus fiéis estão assustados. Tento confortá-los, mas também estou assustado. Os políticos anti-imigração, como o Saviano, agitaram a garrafa e tiraram-lhe a rolha. Os seus apoiantes queixam-se dos refugiados do Médio Oriente e de África, mas não há ninguém que eles abominem mais do que nós. É o ódio mais antigo. Aqui em Itália, já não é mal visto ser antissemita. Nos dias de hoje, o desprezo por nós pode expressar-se de forma bastante aberta. E os resultados têm sido inteiramente previsíveis.
— A tempestade há de passar — disse Gabriel, com pouca convicção.
— Os teus avós provavelmente disseram o mesmo. Tal como os judeus de Veneza. A tua mãe conseguiu sair de Auschwitz viva. Os judeus de Veneza não tiveram tanta sorte. — O rabino Zolli abanou a cabeça. — Já vi este filme antes, Gabriel. Sei como é que termina. Nunca te esqueças de que o inimaginável pode acontecer. Mas não vamos estragar a noite com conversas desagradáveis. Quero gozar a companhia dos meus netos.
Na manhã seguinte, Gabriel acordou cedo e passou algumas horas a falar com os seus principais colaboradores na Avenida Rei Saul, sob a proteção da chupá. Depois, alugou um barco a motor e levou Chiara e as crianças num passeio pela cidade e pelas ilhas da lagoa. Estava demasiado frio para nadar no Lido, mas as crianças tiraram os sapatos e perseguiram gaivotas e andorinhas-do-mar pela praia. Na viagem de regresso a Cannaregio, pararam na Igreja de San Sebastiano, em Dorsoduro, para ver a pintura de Veronese, A Virgem e o Menino em Glória com Santos, que Gabriel restaurara durante a gravidez de Chiara. Mais tarde, enquanto a luz de outono se desvanecia no Campo di Ghetto Nuovo, as crianças participaram num ruidoso jogo de apanhada, enquanto Gabriel e Chiara assistiam, sentados num banco de madeira no exterior da Casa Israelitica di Riposo.
— É possível que este seja o meu banco preferido no mundo inteiro — disse Chiara. — Era aqui que estavas sentado no dia em que ganhaste juízo e me imploraste que te aceitasse de volta. Lembras-te, Gabriel? Foi depois do atentado no Vaticano.
— Não sei bem o que é que foi pior, se as granadas-foguete e os bombistas suicidas ou a forma como tu me trataste.
— Tu mereceste, seu pateta. Nunca devia ter aceitado voltar a namorar contigo.
— E agora os nossos filhos estão a brincar no campo — disse Gabriel.
Chiara olhou de relance para o posto dos carabinieri.
— Vigiados por homens armados.
No dia seguinte, quarta-feira, Gabriel esgueirou-se do apartamento depois dos seus telefonemas matinais e, com uma caixa de madeira envernizada debaixo do braço, caminhou até à Igreja da Madonna dell’Orto. A nave central estava na penumbra e os andaimes ocultavam os arcos ogivais das naves laterais. A igreja não tinha transepto, mas, ao fundo, existia uma abside com cinco lados que albergava o túmulo de Jacopo Robusti, mais conhecido como Tintoretto. Foi aí que Gabriel encontrou Francesco Tiepolo. Era um homem grande como um urso, com uma barba crespa, grisalha e negra. Como era habitual, envergava uma túnica branca solta e um lenço amarrado despreocupadamente à volta do pescoço.
Deu um abraço apertado a Gabriel.
— Sempre soube que ias voltar.
— Estou de férias, Francesco. Não nos entusiasmemos demasiado.
Tiepolo acenou a mão como se estivesse a tentar afugentar os pombos na Piazza di San Marco.
— Hoje estás de férias, mas, um dia, vais morrer em Veneza. — Baixou o olhar para o túmulo. — Suponho que teremos de enterrar-te noutro lugar que não seja uma igreja, não é?
Entre 1552 e 1569, Tintoretto criara dez pinturas para a igreja, incluindo a Apresentação da Virgem no Templo, que pendia no lado direito da nave. Era uma tela gigantesca, de 4,80 por 4,29 metros, e uma das suas obras-primas. A primeira fase do restauro, que era remoção do verniz desbotado, estava concluída. Faltava apenas o retoque das partes da tela deterioradas pela passagem do tempo e condições ambientais. Seria uma tarefa monumental. Gabriel calculava que um único restaurador pudesse demorar um ano a concluí-la, se não mais.
— Quem foi a pobre alma que removeu o verniz? O Antonio Politi, espero.
— Foi a Paulina, a rapariga nova. Tinha esperanças de poder observar-te a trabalhar.
— Suponho que a tenhas desenganado dessa ideia.
— Taxativamente. Ela disse que podias ficar com a parte do quadro que quisesses, exceto a Virgem.
Gabriel ergueu o olhar para a parte superior da imponente tela. Maria, a filha de três anos de Joaquim e Ana, judeus de Nazaré, subia hesitantemente os quinze degraus do Templo de Jerusalém em direção ao sumo sacerdote. Alguns degraus abaixo, havia uma mulher reclinada, vestida com um manto de seda castanha. Estava a abraçar uma criança pequena, mas era impossível perceber se se tratava de um rapaz ou de uma rapariga.
— Ela — disse Gabriel. — E a criança.
— Tens a certeza? Precisam de muito trabalho.
Gabriel sorriu tristemente, com os olhos na tela.
— É o mínimo que posso fazer por eles.
Ficou na igreja até às duas da tarde, mais tempo do que pretendia. Nessa noite, ele e Chiara deixaram as crianças com os avós e jantaram a sós no restaurante que ficava no outro lado do Grande Canal, em San Polo. No dia seguinte, quinta-feira, levou as crianças para um passeio de gôndola, de manhã, e trabalhou no Tintoretto do meio-dia às cinco, hora a que Tiepolo trancava as portas da igreja.
Chiara decidiu fazer o jantar no apartamento. Depois, Gabriel supervisionou a batalha noturna conhecida como hora do banho, antes de se retirar para a proteção da chupá para lidar com uma pequena crise em casa. Era quase uma da manhã quando se arrastou para a cama. Chiara estava a ler um romance, alheada da televisão sem som. O ecrã mostrava uma transmissão em direto da Basílica de São Pedro. Gabriel aumentou o volume e soube que um velho amigo falecera.
[1] Tenda sob a qual se realiza o casamento judaico. (N.T.)
[2] Terreiro, em italiano. (N.T.)
[3] Pátio, em italiano. (N.T.)
3
CANNAREGIO, VENEZA
Mais tarde, nessa manhã, o corpo de Sua Santidade, o papa Paulo VII, foi levado para a Sala Clementina, no segundo andar do Palácio Apostólico. Ali permaneceu até ao início da tarde seguinte, quando foi transferido, em procissão solene, para a Basílica de São Pedro, para dois dias de exibição pública. Quatro guardas suíços, com as alabardas a postos, vigiavam o pontífice falecido. A imprensa do Vaticano deu grande destaque ao facto de o arcebispo Luigi Donati, o assistente e confidente mais próximo do Santo Padre, raramente se ter afastado