Marco Lupis

Entrevistas Do Século Breve


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nunca esquecida no ânimo do povo birmanês.

      

      

       Agora que foi liberada, não teme ser expulsa, afastadas pelos seus sustentadores ?

       Deve ficar claro que eu não irei embora. Eu sou birmanesa, renunciei à cidadania britânica exatamente para não oferecer desculpas ao regime. Não tenho medo. E isso me dá força. Mas o povo tem fome, por isso tem medo e assim se torna fraca.

      

      

       Você, por mais vezes e com força, denunciou as intimidações dos militares contra os simpatizantes da Liga para a democracia. Tudo isso continua ainda hoje?

       De acordo com os dados em nossa posse, só em 2001 o exército deteve mais de mil militantes da oposição por ordem dos generais do slorc . Muitos outros foram obrigados a demitir-se da Liga depois de ter sofrido intimidações, ameaças, pressões ilegais para as quais não existe nenhuma justificação. A estratégia de ação é sempre a mesma, capilar: unidade de funcionários estatais espalhados em todo o território nacional vão “porta à porta” para as casas pedindo aos cidadãos para deixar a Liga . As famílias que se negam são chantageadas com o espectro da perda do trabalho e, com frequência, com ameaças explícitas. Muitas seções do partido foram fechadas e todos os dias os militares controlam o número de quantos se demitiram. Isto demonstra quanto medo ele têm da Liga . A esperança neste momento é, para nós todos, que tudo isso tenha realmente acabado.

      

      

       A virada de hoje, o acontecimento da sua liberação, a colheu de surpresa ou se tratou de algo atentamente preparado e estudado pelos militares por questões de “imagem” internacional?

       De 95 até hoje, o isolamento da Birmânia pouco a pouco se desfez, o Ateneu de Rangoon foi reaberto e talvez o nível de vida melhorou levemente; mas a história da Birmânia continua a se desenvolver no quotidiano feito de violências, ilegalidades e abusos tanto contra os dissidentes quanto contra as minorias étnicas (Shan, We, Kajn) na busca de autonomias e, em geral, contra a maior parte da sua população. Os militares estão sempre mais em dificuldades, tanto no plano interno quanto naquele internacional. Neste ínterim, continuam a traficar droga, a menos que não consigam substituir esta rentável fonte de renda com uma outra, igualmente lucrativa. Mas qual? A nação é praticamente um imenso cofre do qual só o exército conhece a combinação. E não será fácil convencer os generais a dividir esta riqueza com os outros cinquenta milhões de birmaneses.

      

      

       A este ponto, quais são as suas condições para começar o diálogo ?

       Não aceitaremos nenhuma iniciativa - fala-se também de eleições convocadas pelos generais - até que seja reunido o Parlamento eleito em 90. O meu País continua dominado pelo medo. Não haverá paz verdadeira até que não existirá um verdadeiro empenho que honra todos aqueles que lutaram por uma Birmânia livre e independente, mesmo se com a grande consciência que paz e reconciliação não possam ser alcançadas uma vez por todas e por isso é necessária uma vigilância sempre mais atenta, maior coragem e a capacidade de desenvolver em nós mesmos a verdadeira resistência ativa e não violenta.

      

      

       O que pode fazer a União Europeia para ajudar o povo birmanês?

       Continuar a fazer pressão, porque os generais devem saber que o mundo olha para eles e que não podem cometer impunemente outros atos vergonhosos.

       *****

       Finalmente, no dia treze de novembro de 2010, Aung San Suu Kyi foi definitivamente solta. Em 2012, obteve uma cadeira no parlamento birmanês e no dia dezesseis de junho do mesmo ano, pode receber o prêmio Nobel pela Paz. Como o governo lhe concedeu finalmente a permissão de ir para o exterior, foi para a Inglaterra, para se encontrar com o filho que não via há anos.

       Em seis de abril de 2016, se tornou Conselheira de Estado (Primeira Ministra) de Myanmar.

       A Birmânia, hoje Myanmar, não é ainda um país completamente livre e o passado ditatorial pesa na história e no futuro da nação. Mas algo mais de uma esperança de liberdade e democracia se abriu afinal no país dos Mil Pagodes.

      

      

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      Lucia Pinochet

      

      

       “ Asasinar, torturar y hacer desaparecir ”

      

      

      

      

      

      

      

      

       Santiago do Cile, março 1999 .

       «Pinochet? Para os clientes é como um câncer. Um mal obscuro..., doloroso. Nós sabemos que o temos, mas temos medo até de falar nele, pronunciar o seu nome. Assim acabamos em fazer de conta que não existe. Talvez esperamos que ignorando-o, este mal vá embora sozinho, sem termos que enfrentá-lo...». A moça que serve às mesas do Cafè El Biografo , ponto de encontro de poetas e estudantes, no Barrio pitoresco de Bellavista em Santiago, o bairro dos artistas e dos velhos restaurantes, com as suas casas coloridas, terá um pouco mais de vinte anos. Talvez ainda nem tivesse nascido quando o general Augusto Pinochet Ugarte, o “Senador vitalício”, como o chamam aqui, ordenava “asasinar, torturar y hacer desaparecir” os seus opositores - como gritam os familiares dos mais de três mil desaparecidos - ou enquanto providenciava com punho de ferro “liberar o Chile da ameaça do bolchevismo internacional”, como garantem os seus admiradores. Porém é ela mesma a querer falar-me de Pinochet e tem as ideias claras: «Tudo aqui é Pinochet. Prós ou contras, mas em cada aspecto da vida do Chile existe ele, o general. É na política, claro. É na memória de todos, nos contos dos meus pais, nos discursos dos professores na escola. E é nos romances, nos livros... no cinema. Sim também o cinema, aqui no Chile, se faz prós ou contras Pinochet. E nós continuamos a fazer de conta que não existe...».

       Já, este ancião senhor obstinado, que enfrenta “com dignidade de soldado” a justiça britânica («...pobre velho!» sussurrou-me no ouvido o porteiro do “Circulo de la Prensa”, onde os fidelíssimos do Senador vitalício , nos anos obscuros da ditadura militar, vinham “retirar” os jornalistas irritados, exatamente atrás do palácio da Moneda onde morreu Salvador Allende, perseguido pelo golpe do General), esse “pobre velho” que aliás, no Chile do Terceiro milênio, se torna um colosso incômodo, que ocupa com os seus cais cada bairro, cada esquina, cada rua dessa cidade, Santiago, que aparece como incerta, dobrada sobre si mesma.

       E depois é ele a memória vívida deste País, uma memória imensa, invasora, embaraçosa para os seus sustentadores e que incomoda aos seus difamadores. Uma memória que se expande pegajosa como um blob nas vidas, nas esperanças