eu não o levarei a papai para o matar como ele disse; não quero que o meu coelho morra. Ele é tão bonitinho, que faz gosto. Quero criá-lo para mim, para mim só, já ouviu, mamãe? Meu coelhinho tão bonitinho!
José estava fortemente comovido, e Joana, fixando nele olhos perscrutadores, leu em seu rosto a pureza e a sinceridade da sua comoção, indício irrecusável, senão prova convincente, da excelência das inclinações do filho. Todas as hesitações que traziam seu espírito em contínua inquietação dissiparam-se diante do enternecimento do menino de cuja brandura e natural bondade já não lhe foi lícito duvidar.
— Dê-me o meu bichinho, mamãe, — pediu José quase chorando.
— Ele é teu, José, e ninguém, ainda que seja teu pai, te privará dele. Mas, antes que o tenhas contigo, quero saber por curiosidade o que vais fazer do coelhinho.
— Ora! Vou levá-lo para casa. Levo logo daqui capim bem verde para ele comer, e faço lá uma caminha no canto do meu quarto para ele dormir junto de mim.
— E se teu pai o quiser matar?
— Pedirei a papai que o não mate, não. Olhe, mamãe: o melhor é eu ir esconder o coelhinho no mato sempre que meu pai estiver para chegar. Deus me livre de ver meu coelho morrer.
— Deus te livre, atrevido! gritou ao pé da mulher e do filho o mau marido, o pai desnaturado, carrasco da família antes de sê-lo da sociedade e de si próprio.
E arrebatando com rudeza bruta das mãos de Joana o pobre animal, fez gesto de lhe quebrar a cabeça contra uma pedra que lhe ficava fronteira.
— Que queres fazer, Joaquim? interrogou Joana, não obstante achar-se aterrada pela presença do marido.
— Ainda perguntas, mãe covarde que só sabes dar a teu filho lições de mofineza? Eu não quero meu filho para chorão.
— Mas eu também não o quero para assassino.
— Hei de ensiná-lo a ser valente. Há de aprender comigo a jogar a faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem espírito que não tens ânimo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é respeitado e temido? Queres que não haja quem faça caso de teu filho?
— Mas eu não quero que meu coelhinho morra, papai.
— Que estás tu a dizer, mal-ensinado?
O menino quis chorar, com o que se mostrou escandalizado por extremo o tirano da família, que, para o fazer chorar com mais gosto, segundo disse, lhe deu três ou quatro cipoadas fortes, depois das quais José mal se pôde ter em pé. Joana não podendo ver o filho apanhar sem razão, partiu para Joaquim, a fim de lhe tirar das mãos o pequeno, mas Joaquim repeliu-a com tanta força, que a fez cair por terra; e voltando-se imediatamente para José, perguntou-lhe com gesto e voz de aterrar:
— Então, mata-se ou não se mata o coelho, José?
— Mata-se, papai — respondeu o pequeno com as faces banhadas de lágrimas ainda.
— Não quero que chores. Quem é homem não chora quem é homem faz chorar.
E dando o andar para a casa, com o filho pela mão:
— Vais ver agora de que modo morre o coelho, — disse com expressão que se não pode descrever.
— Meu Deus, meu Deus! Que desgraça esta, que desgraça minha! exclamou Joana quando os viu desaparecer na volta do caminho.
Os corações maternais têm inspirações angélicas e grandes. Joana, que não se havia levantado ainda, pôs-se de joelhos no meio da natureza verde e esplêndida que a tinha recebido em sua queda, e, elevando os olhos úmidos e tristes ao céu profundo e belo que se estendia a perder de vista acima de sua cabeça enviou a Deus esta súplica cheia de amor e filosofia:
— Senhor, Senhor, protegei meu filho. Inspirai-lhe sentimentos brandos por quem sois, meu Deus. Que ele seja bom e que vos conheça e tema.
Não pôde ir adiante a desventurada mãe cuja voz fora embargada por lágrimas violentas que lhe saltaram dos olhos contra o seu querer. Mas de repente, como se tornasse em si de um sonho penoso e achasse de novo todas as suas idéias um instante obliteradas pela intensa dor, Joana fez em pedaços a tábua, e entupiu com pedras e maravalhas o buraco que com aquela armava ciladas aos inofensivos filhos do deserto. Tendo assim destruído a armadilha, tomou o caminho de casa a qual se lhe deparou um espetáculo em que ela nunca imaginar a e que por um triz não abateu de todo o seu cansado espírito. Uma forca havia sido levantada com ramos verdes no terreiro em sua ausência, e dela pendia por uma embira o coelho, minutos atrás cheio de vida, agora morto, o pescoço distendido, os belos olhos empanados. José, não só não chorava, mas até se mostrava indiferente ao espetáculo repugnante, como se já não fosse o mesmo que poucos instantes antes havia manifestado os mais generosos sentimentos a favor da vítima. O reverso deste recente passado representava-se agora aos olhos de Joana: o pequeno prorrompia em aplausos a cada balanço que dava o corpo inanimado do animal que Joaquim, por entre chufas grosseiras e de mau gosto, impelia de quando em quando com a mão ensangüentada e torpe.
Joana não pôde conter, diante da cena final daquela tragédia infame, a sua justa e bela indignação.
— Homem cruel, onde aprendeste esta lição indigna que acabas de ensinar a teu filho?
A esta angélica exprobração Joaquim respondeu com uma gargalhada de desprezo que retumbou por toda a vizinhança.
— Quem matou o coelho, José? perguntou Joana ao menino, para o qual tinha a autoridade que não podia exercitar sobre o principal responsável do estranho delito.
— Fui eu, mamãe. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho.
Joana volveu novamente os olhos entristecidos a Joaquim, o qual não se demorou a retorquir com a imprudência que o caracterizava
— Fui eu mesmo que o mandei. Que tens com isso? Quererás tomar-me contas, Joana?
— Eu não, Deus sim; Deus há de tomar-te-as um dia, homem sem coração.
— Deus! Quem é Deus, toleirona? Quem já o viu? Quem já ouviu a sua voz? Estás caducando, mulher.
Sem ter para o seu tirano outra resposta que o silêncio, Joana resignou-se a dar-lha, e foi cair sobre um tamborete, com o rosto inundado novamente de lágrimas.
Tempos depois entrou José em casa gritando e chorando. Foi o caso que, tendo ele querido tomar de um menino do vizinho uma xícara de arroz-doce, o menino, que tinha mais idade, mais corpo e mais força do que ele, não só não se deixou esbulhar de sua propriedade, mas até bateu em José com vontade, sem contudo se sair ileso, porque José lhe pôs a cara em sangue com as unhas, e lhe arrancou da coxa um pedaço de carne com os dentes.
Sabendo do acontecido, Joaquim fez de uma folha de facão velho um punhalzinho e, chamando o filho, entregou-lhe a nova arma, mediante este discurso:
— Sabes para que fim te dou este ferro, José? É para não sofreres desaforo de ninguém, seja menino ou menina, homem ou mulher, velho ou moço, branco ou preto o que te ofender. Se alguma vez entrares em casa, como entraste hoje, apanhado, chorando, ouve bem o que te estou dizendo, dou-te uma surra de tirar pele e cabelo, e corto-te uma orelha para ficares assinalado. Toma o ferro.
José tinha então seus nove para dez anos, e ouviu a advertência do pai com toda atenção, prometendo cumprir fielmente as suas ordens.
Joana, que tudo presenciara, e de certo tempo atrás adotara o alvitre de não contrariar abertamente o marido para o não incitar a maiores excessos, aguardou a sua ausência, e quando foi tempo pregou a José as lições de moral que seguem:
— Meu filho: Deus, nosso pai, que está no céu, não pode receber bem os feios atos a que teu pai, que está na terra, te aconselhou há pouco. Para os mais velhos não tenhas nunca expressões descorteses e muito menos ações ofensivas; ainda que seja um negro, deves ter, embora não sejas de sua qualidade, respeito pela