August Nemo

Romancistas Essenciais - Franklin Távora


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do Aterro passei eu por ela. O governador ficou muito escandalizado com o que eles fizeram ontem à noite no palácio do bispo, e diz que há de pô-los na corda mais dia menos dia. Tudo isso me contaram na venda de seu José, do pátio da Ribeira.

      — Homem, não posso deixar de lhe agradecer seu aviso.

      — Não tem que me agradecer. Eu quis fazer este serviço ao próprio Zé Gomes; com o pai pouco me importa, que, aqui entre nós, é muito descortês e desaforado. Mas, tendo meu irmão Liberato visto Zé Gomes menino, e querendo-lhe por isso algum bem, achei que era minha obrigação fazer o que em meu caso faria meu irmão para livrar do risco o antigo conhecido. Diga-lhe isto mesmo. E até à primeira vista, que tenho que ir encher ainda de aguardente estas ancoretas no engenho da Madalena; além disso a soldadesca já deve vir bem perto no faro das cascavéis que estão no ninho.

      Quando Timóteo volveu a dar parte do que lhe dissera o negro, não encontrou os três malfeitores (os quais na realidade tinham passado a noite na taverna), senão o Teodósio que, sabendo de tudo melhor do que os outros dois, os quais haviam unicamente ouvido através das portas algumas das palavras do negro, correu sem demora a meter-se em uma espécie de esconderijo que arranjara em Tigipió e cuja existência era só dele conhecida.

      Na época em que se passou esta história, fazia o Capibaribe adiante do Forte da Piranga, um cotovelo, que foi depois aterrado, e é hoje quintal de uma casa. O ângulo internava-se na direção do sul por entre uns lajedos alcantilados que se sumiam dentro de um capão de mato.

      Era uma situação selvagem e encantadora, pela fartura da amenidade e das sombras com que a dotara a natureza, a qual desde os Afogados até ao Peres apresenta uma face monótona e triste — uma imensa planície, coberta de capim-luca.

      Por entre as lajes via-se uma vereda de gado que ia ter no engenho da Madalena ou do Mendonça, segundo o chamaram antes. Esse atalho encurtava quase um quarto de légua do caminho para quem tinha de ir da margem direita ao dito engenho.

      O crioulo, por nome Gabriel, foi marginando o rio até ao ponto em que este fazia sua internação no continente. Nesse ponto o terreno acidentava-se um pouco, e elevava-se ate as lajes negras pelo meio das quais o gado tinha aberto sua passagem, melhor e mais naturalmente do que o faria o homem.

      No momento em que o negro ia entrar na capoeira que cobria o sítio, alguns ramos se afastaram violentamente de um dos lados, e dois sujeitos literalmente armados surgiram diante de seus olhos.

      Vendo-se assim assaltado por Joaquim e pelo filho deste, o crioulo pôde unicamente dizer estas palavras:

      — Acabo de lhes fazer um bem, e é deste modo que vosmecês me dão o pago?

      — Desce do cavalo, negro. Este cavalo foi teu até este momento; dagora em diante ele nos pertence, e é preciso que no-lo entregues quanto antes.

      — Meu cavalo! exclamou o crioulo com entranhada dor. Meu cavalo é meu único haver, meus senhores. Se vosmecês mo tomarem, com que darei eu de comer a minha mulher e a meus filhos, que não têm outro arrimo senão eu?

      — Que morram de fome como estão morrendo da seca os outros por aí além. Demais, não te custará ganhar com que comprares outro cavalo para continuares em teu ofício. Deste é que deves perder o feitio. Precisamos dele já para fugirmos com tempo à tropa que aí vem.

      — Perdão, meus brancos, — disse Gabriel com a voz mais doce e terna que pôde. Eu peço a. vosmecês que me deixem ir embora. Em que os ofendi? Não os tenho respeitado sempre? Vosmecês não me conhecem? Sou um pobre preto que nunca fez mal a ninguém, e que segue seu caminho caladinho sem se importar com a vida dos outros filhos de Deus.

      Os dois matadores não estavam, ao menos naquele momento, para estas banalidades, e, cônscios de que urgia remover o óbice, saltaram sobre o crioulo, e apeando-o com violência, tomaram-lhe o animal, o qual se deixou passivamente conduzir pelo cabresto a um fechado da capoeira onde Joaquim julgou prudente recolhê-lo sem demora.

      Gabriel, que de pé e imóvel viu, com lágrimas nos olhos, desaparecer o seu único bem, reflexionou com pesar:

      — Então, vosmecês vão montados para sua casa, e eu é que hei de ir para a minha de pé, sem o meu cavalo, hem?

      — Ainda estás aí falando, negro? Quererás tomar-nos satisfações? replicou o Cabeleira voltando-se de chofre e fixando sobre o Gabriel a vista que chamejava como a de um chacal.

      — Sim, eu sou negro, é verdade; mas os brancos tomam-me o que é meu, e deixam-me sem caminho nem carreira, com uma mão adiante e outra atrás.

      A estas vozes o Cabeleira. não pôde mais conter-se, e de um só pulo fez-se sobre o seu interlocutor. Este, porém, já não se achava no mesmo lugar, mas sobre uma das lajes que davam para o rio, tendo em uma das mãos uma faca nua, que refulgia ao raios do Sol.

      — Se quer brincar na ponta da faca, meu branco, a coisa é outra, e vosmecê encontra homem, — disse de cima.

      Ainda bem não tinha proferido estas expressões, quando a seus olhos brilhava também a faca de seu feroz contendor.

      Travou-se então entre eles um combate de gigantes que durou alguns minutos. A esse combate surdo, medonho, dava lúgubre realce o deserto com sua profunda solidão.

      Os dois contendores eram habilíssimos em jogar a faca. Nunca se encontraram competidores mais dignos um do outro.

      As lâminas inimigas cruzavam-se a modo de impelidas por eletricidades iguais. O jogo da faca era já nesse tempo uma especialidade característica dos matutos do Norte, máxime dos matutos de Pernambuco.

      Na violenta porfia tinham os jogadores percorrido toda a face da laje que, começando no estreito ângulo, ia morrer no Capibaribe por um declive quase abruto. Haviam-se avizinhado tanto do rio, que o ruído das águas já não deixava ouvir o incessante bater dos ferros assassinos. Estes ferros eram como duas serpentes que mutuamente se mordem sem se poderem devorar.

      De repente surgiu Joaquim em cima da pedra a um lado de Gabriel, o qual ficou assim entre dois inimigos capitais.

      — Ainda está vivo este negro, Zé Gomes? perguntou o mameluco ao filho.

      — É agora a sua derradeira, — respondeu este.

      — Com dois é impossível a um só se divertir, — tornou o negro, em cuja testa a alvura do suor contrastava com o negror da pele luzidia.

      José Gomes estava excitado ao último ponto e rolavam-lhe também pelo rosto bagas de suor alvinitente. Querendo por isso e por outras razões abreviar o duelo, cuja duração realmente excedia a sua previsão, apertou com o crioulo com toda a violência de que era capaz e que, como sempre, levou de vencida todas as resistências adversas. Gabriel, ou porque conhecesse que na realidade estava exposto a iminente perigo, ou porque julgasse ser chegado o momento de pôr por obra a sua traça, deixou-se escorregar, quando menos esperava o inimigo, pela face oposta da laje, e foi cair dentro das águas que passavam ali rápidas e espumosas.

      Cabeleira correu, fora de si, após o fugitivo a fim de ver se o apanhava para mitigar no sangue dele a sede que o combate lhe acendera; mas antes que houvesse transposto o espaço que os separava, a detonação de um tiro lhe anunciou que o temerário que lhe resistira acabava de pagar com a vida esta ousadia.

      Um momento depois o cadáver de Gabriel, entalado entre duas pedras que sobressaíam às águas no meio do canal, tingia-se com o seu sangue, e Joaquim o mostrava com o cano do bacamarte, ainda fumegante, ao filho, que nunca pôde, como seu pai, matar curimãs a tiro nas águas turvas das enchentes.

      IV

      SEGUNDO as tradições mais correntes e autorizadas o Cabeleira trouxe do seio materno um natural brando e um coração benévolo. A depravação, que tão funesta lhe foi depois, operou-se dia por dia, durante os primeiros anos, sob a ação ora lenta ora violenta do poder paterno, o qual em lugar de desenvolver e fortalecer os seus belos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a uma máquina de cometer