em resposta, palavras injuriosas ou insultuosas contra o teu ofensor. As armas só servem para excitar à prática de crimes; os homens bons não trazem consigo armas. Dá-me o punhal, de que teu pai te fez presente e recebe em troca este rosário que te dou para tua consolação nas tribulações[1]. Reza por estas contas, e encomenda-te todas as manhãs e todas as noites a Deus. Assim praticando, virás a ser estimado de todos e darás prazer a tua mãe que morreria de dor e vergonha se te visse apartado do caminho do bem.
De que serviram porém estes bons conselhos, se Joaquim, vendo mais tarde o rosário no pescoço do filho, fez em pedaços a enfiadura, espalhou as contas pelo chão, e chamou a mulher feiticeira?
Não ficou aí a manifestação do seu desagrado. Voltando-se para Joana:
— Se continuares a fazer asneiras como esta — disse ele — acabas queimada, bruxa; e eu não respondo pelo que venha a praticar para impedir que continues a contrariar as minhas determinações. Quem avisa amigo é.
O pároco, a cujo conhecimento chegou, por portas travessas, o escândalo, mandou chamar Joaquim à sua presença, e lhe disse que. se ele repetisse a cena do rosário, ou obrasse ato idêntico, seria ele Joaquim quem deveria de morrer queimado por crime de heresia.
Joaquim tornou a casa tão furioso, que puxou pela faca para matar Joana, a quem atribuiu o mexerico; esta, porém, não correu nem pediu que a socorressem; limitou-se a chorar em silêncio a sua desgraça e a apelar para Deus a quem não cessava de encomendar o filho em suas orações.
Depois de haver esgotado o vocabulário dos epítetos infamantes contra sua mulher, e dos convícios imundos contra o vigário, determinou Joaquim de deixar a casa para se ir meter com José no "oco do mundo", palavras suas.
Que noite passou Joana!
Não houve rogativa, não houve lágrimas que abrandassem o coração do mameluco. Desgraçada mãe, que pediste e choraste em vão, em vão como sempre!
— Vai só, Joaquim, já que me queres deixar; deixa porém comigo meu filho; peço-te esta graça por tudo quanto há sagrado na terra e no céu — disse ao marido a infeliz mulher com angelical doçura, momentos antes da partida fatal.
— Nessa não caio eu — replicou Joaquim. — Se José ficasse em tua companhia, quando eu voltasse um dia por aqui, achava-o servindo ao vigário ou, pelo menos, feito sacristão.
José entretanto, como querendo escusar-se às saudades da despedida, encaminhou-se para o quintal donde se pôs a olhar para os araçazeiros e goiabeiras em que ele foi encontrar novo motivo de pesar com que não contava. Eis que uma menina de longos cabelos castanhos, que estava brincando em um dos quintais contíguos, foi tirá-lo da sua contemplação.
— Que está você fazendo, José?
— Ora! Não sabes que vou sair de casa, Luisinha?
— Não sabia, não.
— Pois vou, e não sei quando voltarei. Estou triste. Tenho pena de deixar mamãe.
— E de mim não tem também pena? perguntou ela com suave ingenuidade.
— Tenho também, sim; eu estava lembrando-me de você agora mesmo. Olhe, Luisinha: se eu algum dia voltar você me quer para seu marido?
— Eu lhe quero muito bem, José. Mas não gosto quando você judia com os passarinhos e dá pancadas nos meninos.
— Pois eu lhe digo uma coisa: se algum dia eu chegar aqui de volta, tenha logo por certo que não faço mais mal a ninguém. Se pareço mau, Luisinha, não é por mim.
Deste inocente colóquio os veio tirar a voz de Joaquim que chamava por José para partirem. Pouco depois o pai e o filho deram as costas à povoação. Joana ficou de cama.
Data desse dia a vida que levaram até o momento de caírem no poder da justiça. Não foi ela nada menos do que uma longa série de atentados que dificilmente se acreditam. O número destes atentados e as circunstâncias que os revestiram, não há quem os saiba com individuação e clareza. Muitos deles foram de todos esquecidos, na longa travessa de mais de um século que se conta de sua perpetração; e dos que assim se não perderam chegou aos nossos dias uma notícia vaga, incompleta e por vezes tão escura, ou tão confusa, que temos lutado com grandes dificuldades para, por ela, recompor esta história.
É que as tradições do crime são menos duradouras que as da virtude.
Há nisto uma lei salutar da Providência.
V
LUISINHA era uma menina branca, órfã, de índole benigna e de muito bonitos modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viúva recolheu-a em sua casa à conta de filha, e começou logo a. ter para ela maternal solicitude. Luisinha era digna deste amparo, não só pelos predicados sobreditos, senão também pelos seus encantos naturais que a todos cativavam com justa razão.
Florinda, a viúva, deu à menina a educação que então se usava e que, com poucas modificações, e alguns acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. Assim, não se demorou muito que Luisinha soube fiar, coser costuras chãs, fazer bicos e rendas, respeitar os mais velhos e encomendar-se a Deus. Como era dotada de excelente coração, dentro em pouco era estimada por todos do lugar, e até pelos comboeiros e boiadeiros que se arranchavam no povoado para deixar passar a força do sol do meio-dia, ou aí pernoitarem quando não podiam, ainda com ar de dia, romper a mata onde se acoitavam negros fugidos e malfeitores.
A mata tinha mais de légua de comprido, e ninguém lhe sabia os esconderijos.
Quando se divulgou que Joaquim havia deixado a mulher, todos, a uma voz, logo prognosticaram que ele ia estabelecer dentro da mata virgem o seu novo domicilio. À vista da sua má índole de todos conhecida, houve quem assegurasse que ele estava de mãos dadas com os facinorosos de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte, que ali se homiziavam. Muitos destes eram conhecidos por seus nomes e pessoas, e uma vez por outra faziam sortidas sobre os povoados, saqueavam as vendas, perpetravam mil desatinos, e escapavam sempre à ação da justiça, ineficaz naquele tempo, como ainda o é hoje a nossa polícia nos povoados longínquos, para não dizermos nas próprias capitais segundo sabemos.
A voz do povo não era senão o eco da verdade.
Não se meteu muito tempo que crimes de nova espécie, revestidos de circunstâncias que velavam a maior perversidade de parte dos delinqüentes, vieram a atestar que os negros arraiais estabelecidos no centro da espessura haviam feito novas aquisições que primavam, nas ciladas, no manejo das armas, na firmeza das execuções.
A princípio não se soube a quem atribuir o sangue novo levado às veias dos grupos dos criminosos aí asilados, os quais, bem que numerosos, nunca manifestaram a audácia, a ferocidade inaudita que surpreendiam e aterravam agora as populações. Para maior confusão destas, tinha sido visto mais de uma vez o Joaquim, ora de companhia com o filho, ora cada um sozinho, montado no seu cavalo, vendendo legumes, macaxeiras, farinha, açúcar pelas povoações, e fazendo compras no Recife; o que deixava, pelo menos supor que eles se davam ao trabalho da lavoura, e passavam a vida honestamente à custa do suor de seu rosto. Mas em menos de dois anos não se pôde mais pôr em dúvida que fossem consenhores dos vastos e virgens domínios, onde figuravam talvez como os primeiros e mais respeitados de todos os outros conquistadores, seus iguais.
Algumas vítimas que tinham conseguido, por felicidade ou acaso, escapar com vida das garras dos feros algozes, deixando-lhes unicamente dinheiro, fazendas ou gêneros, declaravam que o mais audaz e o mais terrível dentre eles era um jovem de cabelos tão crescidos que lhe batiam nos ombros, assemelhando-se aos de uma dama. Outros diziam que tinham visto por muitas vezes o Joaquim na mata dos salteadores, e que na pessoa do jovem dos cabelos compridos ou do Cabeleira, segundo começaram logo de chamá-lo, haviam reconhecido seu filho José Gomes.
Notou-se também uma espécie de moderação, ou de suspensão de hostilidades, ou ao menos de cessação de crueldade nestas, de parte dos salteadores em certas quadras do ano, durante