August Nemo

Romancistas Essenciais - Franklin Távora


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agora diferente efeito. A vista do bandido foi pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou-lhe mais do que o corpo, e ele caiu sem sentidos à beira do poço.

      Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu delíquio, a aurora vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se confunde no infinito. A viração matutina transmitiu-lhe aos ouvidos uns sons cadenciados que vinham de longe. Era o eco das loas cantadas pelas meninas e raparigas da povoação que vinham encher os potes nos poços como de costume.

      Levantou-se ainda aturdido. Seus olhos foram logo cair sobre o lugar onde na tarde anterior ele havia deitado Florinda em terra com o coice do bacamarte. Não se achava, porém, ali o cadáver da curiboca. O bandido deu então o andar para a estância, com o pensamento concentrado em Luísa que, tendo-se visto livre de suas mãos, correra em socorro de Florinda.

      — Minha mãe? minha mãe? chamara ela, abraçando o corpo da vítima, e chorando como criança.

      No seu prantear e no seu carpir, Luísa tivera todavia espírito para lembrar-se das últimas palavras do Cabeleira. «Com pouco ele estará aqui outra vez, pensou ela. Deus me livre de que ele venha ainda encontrar-me neste ermo. Que seria de mim se tal acontecesse? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãe só e desamparado?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei até que amanheça. Há de aparecer alguém que me ajude a levá-lo para casa».

      E aflita, e consternada, Luísa olhara ao longo da margem a ver se descobria quem a socorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram-se sobre a areia, à beira dos poços. Ela sentira então voltar-lhe o ânimo, falara, perguntara quem estava ali, pedira que a fossem amparar em tamanha aflição, mas ninguém a ouvira, ninguém acudira ao seu chamamento. Tudo fora ilusão. Esses vultos foram as sombras das árvores movidas pelo vento, as quais enganaram depois o bandido como vimos.

      A noite, porém, corria com rapidez. A Lua que descia a ocultar-se por detrás da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza, O Silêncio tornava-se mais profundo, tornava-se absoluto. O sítio, de si ermo, estava agora lúgubre por se haver convertido em mansão de morte e luto.

      Luísa lembrara-se de ir chamar alguém, visto que ninguém lhe aparecia para a tirar daquele aflitivo transe. Mas a casa que ficava mais próxima era a de Liberato, a qual distava, entretanto, pouco menos de meio quarto de légua do lugar. Além disso, ela não queria deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por momentos quanto mais por horas.

      De uma vez correra ao longo da margem a ver se o céu lhe tinha enviado algum protetor. Mas logo voltara, lembrando-se de que o cadáver podia, de um instante para o outro, ser ofendido por algum animal.

      — Não, não, minha mãe! exclamara ela. Não te deixarei, haja o que houver.

      Então ela vira que o cadáver erguera os braços para conchegá-la, ao que parecia, ao seu seio. A moça fizera conta que estava sonhando e delirando, e que o movimento de Florinda fora como ilusão dos olhos dela.

      — Abraça-me, minha mãe, abraça-me. Leva-me contigo que eu, sem ti, sou o ente mais desgraçado do mundo.

      Mas, sentindo a pressão física e irrecusável dos braços que tinha por mortos, recuou para à pálida claridade do escasso luar, certificar-se da verdade.

      — Não fujas, Luísa. Vem. Não estou morta. Ajuda-me, que me levantarei.

      Não podia ser mentira dos seus ouvidos. Era a voz de Florinda, aquela voz branda e benévola que ela estava acostumada a escutar desde a infância como o eco de maternal providência.

      — Minha mãe! Vive ainda, minha querida mãezinha? perguntara Luísa, chorando e sorrindo alternativamente, beijando como louca sem ordem nem moderação, aquele cadáver que se tornara vivente, aquela vida que ressuscitara no seio da natureza onde lhe parecera que se havia afundado para nunca mais voltar como se afundam as borboletas que as tempestades arrojam aos charcos e marnéis.

      — Vê se podes levantar-me, Luisinha.

      — Sim, saiamos já daqui antes que tornem os malfeitores. Eles não tardam por aí, creio eu. Vamos já minha mãe. Está me parecendo que dali, daquele mato traiçoeiro, um homem nos acomete, ou um tiro nos vem ferir.

      Cambaleante e trôpega, Florinda dera o andar arrimando-se no ombro da filha.

      — Que tens, Luisinha, que olhas tão horrorizada para aquela banda? Fez-te algum dano o assassino?

      — Não, nada me fez. Mas eu tenho medo destes lugares. Nunca mais virei buscar água aqui.

      — Conta-me tudo, Luisinha. Como te livraste do malfeitor? Quem era ele? Não o conheceste? Seria o Cabeleira?

      — Não sei, minha mãe. Estava já tão escuro quando ele apareceu... Sei porém, que ele se compadeceu de mim.

      — Estás dizendo a verdade, Luisinha?

      — Sim, minha mãe, ele não me ofendeu. Dando mostras de estar arrependido, fugiu logo depois, e não voltou mais.

      — Malvado! disse Florinda. Que pancada me deu ele! Põe a mão em minha fonte. Vê como fiquei. Virgem Santíssima! Não sei como não me saltaram os miolos. Mas... ampara-me bem, que uma nova perturbação me vem tirar os sentidos. Ampara-me, senão caio. Não posso andar mais.

      — Temos de feito andado muito, minha mãe, e deve estar cansada.

      Luísa, novamente aflita, volvendo os olhos em torno de si, viu, a poucas braças, uma sombra imóvel que brilhou aos seus olhos como um astro de proteção e conforto.

      Estavam salvas. Era a casa de Liberato.

      VIII

      A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas podia considerar-se uma verdadeira casa de campo por sua bonita aparência, pela vista que tinha para todos os lados, pelo alpendre circular e pelo meio peitoril de madeira que não contribuía pouco para sua rústica elegância.

      A pequena distância tinham sido edificadas três casas menores e menos vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, e nas outras duas os filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via-se outra casinha que na forma arremedava a casa-grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão, aí vivia com sua mulher e filhos, na paz do Senhor.

      Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio de Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados e vazantes e, no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras, destilava aguardente, e desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo o ano.

      Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos, aquele genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais bonitos exemplos, que se conhecem, de união, auxilio mútuo, recíproco respeito e comum felicidade.

      Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia recomendado aos companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por costume caçar pacas e tatus uma vez por outra, quando fazia luar e o tempo estava enxuto, não houve quem duvidasse da palavra dos caçadores. Quando, porém, se soube do acontecido por boca de Luísa, e pelo vestígio da atrocidade que Florinda trazia na face, a qual bem estava dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto vieram tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os habitantes da engenhoca.

      Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia-noite até o amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar.

      O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza. Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno das águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia com seus esplêndidos matizes, essa luz vivificadora restituiu ao deserto o movimento e a vida que as trevas tinham ocultado debaixo de seu espesso véu.

      Com