August Nemo

Romancistas Essenciais - Franklin Távora


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por cima do férvido charco das suas paixões, e deixara, se não purificadas, decerto quietas as águas que aí se enovelavam turvas e lodosas. Essas águas nunca jamais viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de verão, por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes que se geram e alimentam em pútridos pântanos; podiam tornar-se mansas, como as dos lagos, azuis como as dos golfos.

      A princípio os companheiros do bandido atribuíram o seu silêncio, a sua tristeza e a sua abstração aos ferimentos recebidos na luta.

      Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento querido que, não só a ele, mas também a todos os do couto proporcionava, nas mãos do inspirado tocador, momentos de prazer e consolação.

      Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma vereda que ia ter à borda da grota aonde chegava levemente a aragem do tabuleiro, donde se descortinava o vasto sertão opresso e abrasado.

      Aos sons da viola puseram-se uns a cantar, outros a dançar, como brincam saltando as crianças nas campinas.

      De repente Manuel Corisco fez sinal para que se calassem.

      — Estou vendo ali embaixo um homem que vem na direção da grota, disse ele aos camaradas.

      — Você não se engana, Manuel. Ele vem tomando chegada tão gacheiro e amedrontado, que não pode ser amigo nosso.

      Os salteadores tinham razão, porque o desconhecido era Matias.

      Um deles quis imediatamente estendê-lo por terra com um tiro do seu bacamarte. Assentaram porém ocultar-se a fim de verem primeiramente o que pretendia.

      Quando Matias desapareceu por um lado, segundo já dissemos os malfeitores sumiram-se pelo lado oposto, pé ante pé, na embocadura do profundo abismo.

      Tinha o Cabeleira avançado já alguns passos após os companheiros, quando uma idéia súbita, atuando sobre sua vontade por modo irresistível, o fez sobressaltar-se. Ele se lembrara de que se os companheiros conseguissem apoderar-se do desconhecido, não o deixariam com vida. Mas o bandido sentia-se naquele momento tão pouco disposto a contribuir para a morte de um homem que não pôde acabar consigo que voltasse à beira da grota.

      — Se eu quisesse, esse desconhecido não morreria, disse de si para si. Mas não. Se não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, também não o irei salvar.

      O lodo tinha já desaparecido da superfície do charco imundo que ele trazia no coração; restava, porém, ainda no fundo, como se vê, a vasa corruta e pestilencial.

      Para que Matias declarasse o fim que o levava àquele ponto, preciso foi primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nele sem piedade. Suplício atroz e covarde que o índio sofreu com estóica resignação característica de sua raça.

      — Então dizes, ou não dizes a que vieste, Veado do inferno? perguntara Joaquim.

      — Vim em procura daqueles que ali estão para os urubus comerem, respondera o velho.

      — Até que enfim deste com a língua nos dentes.

      — Quiseste primeiramente provar o cipó de rego.

      — Mas não nos dirás quem foi que te mandou a isso?

      — Quem me mandou! Tive pena daquelas mulheres que choravam por seus maridos, e larguei-me a ver se os encontrava.

      — Tiveste pena das mulheres, hem? Maganão! Havemos de lá ir hoje de noite para também termos pena como tu tiveste.

      — Elas não serão tão tolas que apareçam a qualquer que lá chegue, retorquiu Matias com segunda tenção.

      — Mas a ti abriram elas a porta, velho mandingueiro.

      — Para mim hão de ter sempre franca a sua casa, porque sabem que eu sou incapaz de as ofender.

      — Então, se lá formos, não nos deixarão entrar? perguntou Joaquim.

      Matias, depois de um momento de reflexão, respondeu:

      — Só se forem comigo.

      — Pois está dito. Iremos contigo, disse o Mulatinho.

      — Mas tu irás amarrado, bem amarrado, jia de lagoa, acrescentou José Trovão.

      — Como quiserem, contanto que não me matem no caminho.

      — Se nos facilitares a entrada, podes ter por certo que não haverá quem se atreva a tocar-te em um cabelo sequer.

      — Bem sabes que não precisamos do auxílio de pessoa alguma para tomarmos conta de uma casa onde só há mulheres choronas, observou Joaquim. Mas sempre é melhor entrar sem fazer barulho para não dar que falar à vizinhança.

      Era quase noite, e já a lua espargia a luz suave por sobre a solidão, quando se acharam novamente na beira do despenhadeiro. Segundo um plano assentado entre eles, quatro seguiram com Matias pelo lado por onde havia descido, enquanto os outros, subindo pelo lado oposto, se dirigiram ao esconderijo a fim de se proverem dos instrumentos necessários para o assalto. Os primeiros esperariam pelos últimos na boca da mata para, reunidos, seguirem a seu destino.

      No momento em que os malfeitores tomaram a direção da engenhoca, um cavalheiro que entrara na mata por secretos atalhos, fora dar com o Cabeleira em seu retiro. Era o Teodósio.

      — Arrumem as trouxas, e mudem de acampamento.

      Foram estas as suas primeiras palavras.

      — Donde vens tu? Que diabo tens, Teodósio?

      — Vêm aí soldados que nem terra.

      — Quem te contou semelhante coisa?

      — Eu que sei. O governador está comendo fogo pelo que fizemos na noite da procissão.

      — Ora!... Pois que venham. Hão de saber para quanto presto. Nunca torci a cara a homem nenhum, e não morro de careta, como sagüi.

      — Eu também não tenho medo deles, disse o cabra. Mas é bom a gente estar prevenido para não cair no mundéu como bicho do mato.

      O Teodósio unicamente suspeitava o que dizia estar para acontecer. Fino, matreiro, como era, facilmente previra que não ficaria sem punição o crime que haviam eles cometido na vila.

      — Ora, Teodósio! redargüiu José com mostras de fazer pouco do que lhe dizia o camarada. Eu, por ser bicho do mato, é que não hei de cair no mundéu. Olha tu: enquanto houver mata virgem por esse mundão de meu Deus, podem eles mandar contra mim os soldados que quiserem, que não me apanham, ainda que sejam tantos como formigas. Não me hão de ver nem a fumaça.

      — Não digo menos disso, respondeu Teodósio.

      — Eu sou cabra mesmo danado — prosseguiu Cabeleira. Quem se engana comigo é porque quer. Meto a unha no chão, e entro no oco do mundo para nunca mais ninguém me pôr o olho em cima. As matas de Serinhaém, Água Preta, Goitá, Goiana, Paraíba, Rio Grande aí estão bem fresquinhas para esconderem em seu seio a onça pintada. É bom que não me assanhem. Se o governador duvidar do meu sério, sou capaz de me largar daqui, pi, pi, até à vila, e lá mesmo vou mostrar-lhe com quantos paus se faz jangada.

      — Pois afia bem a tua faca, e escorva de novo o teu bacamarte, que o trovão não tarda a roncar.

      — Eu nunca deixei de trazer a. faca e o bacamarte prontinhos para o serviço. Quem quiser venha ver.

      — Está bom. Até já, disse o Teodósio, despedindo-se para sair.

      — Aonde vais? perguntou-lhe o Cabeleira.

      — Tenho cá uma idéia. Vou passar pela porta do capitão-mor.

      — O capitão-mor está na vila, disse José.

      Não, senhor, está aí. Veio antes de mim, que não me escapou. Vou passar-me pela porta, e tirar conversa com algum soldado bisonho que aí se ache de serviço a fim de ver se pesco notícia que nos oriente.