Meu Deus, meu Deus, socorrei-nos.
Rosalina poderia ter vinte anos. Suas formas eram arredondadas, os cabelos crespos e negros, os olhos admiravelmente fendidos, a. boca impossível de descrever-se porque exprimia graça, volúpia soberba e desdém ao mesmo tempo. Era o tipo da mulata ardente, caprichosa, cheia de vivacidade e energia, tipo que está destinado a desaparecer dentre nós com o correr dos anos, mas que há de ser sempre objeto de tradições muito especiais no seio da sociedade brasileira, pelo muito que tem figurado no campo, na cidade e no lar.
— Sim, querem tocar fogo na casa para nos obrigarem a sair. Mas não sairemos, disse Rosalina com firmeza.
E acrescentou sem demora:
— Sair para onde? Os nossos maridos desapareceram para sempre dentre os nossos braços. Não temos mais quem olhe por nós neste mundo de amarguras e misérias. Somos cinco desgraçadas a quem a vida já não pode oferecer prazer nem sossego mas só desgostos e lágrimas. Não, Cândida, não sairemos daqui.
— Mas que faremos, Rosalina?
— Que faremos! Pois você ainda pergunta?
— Sim, porque os malvados estão aí, e é tempo de tomarmos a nossa resolução.
— Está tomada — respondeu Rosalina. Morreremos, e não nos entregaremos aos malvados.
— Meu Deus! meu Deus! exclamou Teresa.
— Não, não, Rosalina — acrescentou Josefa. Vamos ver se nos salvamos.
— Se nos salvamos!... disse a mulata com ironia e desdém. Não ouves os malfeitores baterem na porta?
— Mas então... balbuciou Teresa.
— Morreremos todas, Teresa, morreremos todas, mas com honra, ao pé deste oratório — gritou Rosalina com tal energia e decisão que nenhuma das outras se animou a proferir uma palavra sequer contra a sua sentença de morte.
Para dar o exemplo, a mulata caiu de joelhos diante do santuário, tendo no rosto a serenidade que faz belos e venerandos os mártires, os verdadeiros mártires.
Teresa foi a primeira que imitou sua madrasta, e as outras não se demoraram a acompanhar Teresa. Quem poderia resistir à heróica decisão de Rosalina inspirada no sentimento da honra, e na oração?
— Abrem, ou não abrem? perguntou nesse ínterim de fora Joaquim impaciente.
A resposta que a esta pergunta deram as mulheres foi o continuarem o terço alguns minutos antes interrompido, resposta que há de perdurar nas tradições populares, como um traço característico da firmeza e do valor das gentes do norte naqueles tempos de grandeza de ânimo que raro aparece hoje.
— Ah! estão rezando. Fogo, Manuel Corisco, fogo, Mulatinho, fogo, Trovão!
De repente um clarão afogueado inundou o terreiro, e indicou que a ordem do capitão do bando ia ser prontamente executada.
— Depressa, depressa — gritou Joaquim.
— Enquanto o diabo esfrega um olho, o mocambo fica torrado, e as caiporinhas são nossas — respondeu José Trovão, chegando a chama do seu facho a um montão de cangalhas, tripeças, gamelas e outros objetos encontrados no alpendre, e que ele havia apinhado de propósito, para servirem de combustíveis, ao pé das quatro janelas da casa.
Esta operação reproduziu-se na porta fronteira, nas portas e janelas laterais, no peitoril de madeira e nas toscas colunas que sustentavam de espaço a espaço o telheiro do alpendre.
Quando o espírito racional ultrapassa os limites que o separam dos instintos da fera; quando o homem deixa atrás de si, na sua marcha descendente, o animal cerval que bebe o sangue por natural fatalidade a que não pode resistir, não raro figura de protagonista de dramas que, como este, enlutam a história e envergonham a humanidade.
A porta principal tinha sido respeitada. Diante dela estendeu-se pelo chão, formando-se em semicírculo, o bando dos salteadores, os quais ao espetáculo das chamas que do peitoril passando às paredes e destas à coberta, envolveram em poucos momentos a casa e formaram uma só chama, uma fogueira única, gigantesca e medonha, só tinham infames graçolas e indecentes insultos para as vítimas. Sujos, maltrapilhos, nas mãos as facas nuas e os bacamartes sinistros, semelhavam, ao clarão da fogueira imensa, uma legião de demônios que só as crepitantes labaredas separavam dos anjos.
— Quando se resolverem a não morrer assadas na coivara, como lagartixas, abram a porta e saiam sem susto que não havemos de brigar — disse Joaquim.
O estalido da madeira, do barro, das telhas abafou em poucos momentos as vozes das mulheres.
— Que fazem, que não saem logo? perguntou o Mulatinho depois de alguns minutos de espera infrutífera.
— Venham para fora, raparigas — acrescentou o Trovão.
Ainda bem não tinha proferido estas palavras, quando a frente da casa vinha abaixo, atirando torrões abrasados contra as feras que, afrontando o pudor com expressões obscenas, assistiam, ébrios de ferocidade, à medonha representação.
— Parece-me que as caiporinhas se escaparam — disse Joaquim.
A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos portais descansavam uns restos de caibros incendidos.
Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram-na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas ainda não haviam chegado.
Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear do incêndio, veio ressoar no pátio.
— Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo!
Então viu-se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por cima da caliça e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio com Florinda às costas, semelhando uma visão ígnea, fantástica e sobrenatural.
Os malvados, sem se poderem governar, voltaram um passo atrás, não tanto pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente por verem no lugar ocupado, havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua brutal concupiscência se aguçava, pequenos troncos carbonizados em torno da mesa sobre a qual ardia nesse momento a última imagem.
— Diabo! bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de compaixão do que as vítimas.
— Todas mortas! acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que acusava a malograda e lasciva esperança.
— Só nos resta uma — disse o Trovão, correndo, em busca de Luísa que havia caído quase sem sentidos no terreiro junto do cadáver de Matias.
— Cá está ela.
— São duas, são duas.
— Esta é minha, exclamou o Trovão, acercando-se de Florinda para assenhorar-se dela.
— Trovão do diabo! exclamou o Mulatinho com indescritível expressão. Não vês que é uma defunta?
Florinda estava na realidade morta.
— Resta-me a outra.
— A outra? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços?
— Há de ser minha, custe o que custar, redargüiu o negro.
— A outra é minha — disse um terceiro a cuja voz estremeceram irresistivelmente os dois bandidos.
Era o Cabeleira.
IX
PROFUNDA revolução se havia operado durante uma noite no íntimo do bandido.
Quando ele chegou ao couto, estava já resolvido o assalto à família de Liberato, a qual por se achar mais próxima do que qualquer outra, estava no caso de merecer as honras da prioridade na provação.
Cabeleira não deu mostras