se converte na guardiã de uma memória coletiva da Espanha republicana, agora em uma articulação internacionalista, ao defender em sua narrativa que a luta não deve se concentrar entre os povos e nem deve ser de caráter nacional, ao contrário, a resistência é necessária para enfrentar a luta de classes e os sistemas políticos que exploram.
O terceiro bloco, Identidades transatlânticas, brinda-nos com três capítulos. O primeiro, intitulado Por una patria católica. Identidades femeninas en el catolicismo social: Discursos y representaciones en circulación por el espacio atlántico en clave postcolonial (Argentina y España en las décadas centrales del siglo XX), escrito pela historiadora Sara Martín Gutiérrez, aborda, a partir de uma perspectiva da “história da vida cotidiana”, as atitudes sociais das trabalhadoras católicos na Argentina e na Espanha durante os anos 1950, ou seja, em tempos que governavam Francisco Franco e Juan Domingo Perón. A autora está particularmente interessada nas representações e discursos transnacionais do catolicismo social que se difundiram de forma transatlântica através da Ação Católica.
Martín Gutiérrez realiza um exame dos discursos transnacionais a partir da perspectiva das católicas das classes médias que participaram da mobilização política após a Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, a autora pretende identificar como esses discursos e representações foram recebidos pelas trabalhadoras, ou seja, a partir de uma perspectiva from below, tanto na Argentina como na Espanha. Este capítulo se concentra, portanto, no estudo das atitudes das trabalhadoras católicas, revelando discursos e reações em relação ao discurso oficial que, com frequência, poderiam ser considerados “resistentes”.
Neste mesmo bloco, temos o capítulo da historiadora espanhola Irene Mendoza Martín, intitulado Las relaciones entre las mujeres artistas y las industrias del ocio en el continente americano entre 1850 y 1900. Nele a autora trabalha com um aspecto pouco estudado sobre as relações entre Espanha e América Latina: as relações que as indústrias do entretenimento fomentaram, principalmente o teatro e o cinema, desde meados do século XIX. A autora, neste sentido, enfoca seu estudo na relevância que as artistas femininas tiveram neste período, protagonizando diversas peças teatrais e filmes em ambos os lados do Atlântico. Essa circulação e difusão cultural, tendo como protagonistas mulheres espanholas, foi possível através dos laços históricos entre Espanha e América Latina. Nesta relação histórico-cultural, ganhou relevância o mito de Carmen, que era associado à Espanha e, portanto, ao flamenco. Assim, algumas artistas, como Carmencita, Ofelia Aragón, la Bella Otero ou Pepita Soto, representam a relevância da mobilidade das mulheres para o estabelecimento da indústria do lazer no Ocidente e para fomentar os laços transatlânticos.
Para concluir esta parte do livro, temos o capítulo de Marizol González Romero, Reflejos de resistencia: Circulación de fotografías de mujeres argelinas realizadas por Marc Garanger (1954-1962). No seu texto, González Romero aborda a imagem da mulher argelina como integrante da Frente de Libertação Nacional (FLN), durante a Guerra de Independência da Argélia (1954-1962). Desta maneira, a autora analisa as fotografias de mulheres argelinas muçulmanas feitas pelo militar francês Marc Garanger.
A autora concebe essas fotos como formas de resistência emocional frente à política de gênero colonial francesa. Neste trabalho, vemos que as imagens das mulheres argelinas são feitas através de um olhar colonizador e masculino, que vê essas mulheres como as outras, destituídas de poder e que sofrem, por meio das fotografia e da necessidade do desvelo, uma violência, ademais de física, também simbólica. Essas fotografias, no entanto, circularam pelo mundo, cruzando oceanos e sendo, portanto, evidências da resistência dessas mulheres. Neste trabalho, a autora nos mostra que as argelinas foram mulheres politicamente ativas e lutaram pela autodeterminação de seu país: uma luta que, por meio das suas fotografias, ultrapassou fronteiras.
O último bloco, Intelectuais em movimento, nos traz dois capítulos. O primeiro, de Aida Rodríguez Campesino, intitulado Carolina Marcial Dorado: una intelectual transatlántica, busca analisar a importância de Carolina Marcial Dorado, intelectual espanhola que teve sua biografia marcada pela experiência transatlântica entre Espanha e Estados Unidos.
No início do século XX, mudou-se para os Estados Unidos, onde trabalhou em várias instituições como professora de espanhol. Como resultado de suas experiências biográficas e seus escritos, este capítulo, escrito por Rodríguez Campesino, realiza um estudo biográfico de Carolina Marcial, que sintetiza uma experiência transatlântica marcadamente intelectual. Carolina Marcial, ademais, ao longo da sua vida, reflexionou sobre a situação das mulheres, deixando vários documentos e registros sobre o que pensava estar vivendo como uma “nova era” para as mulheres espanholas, cuja característica principal era o ingresso das mulheres ao espaço público. Ela própria, portanto, era um exemplo fidedigno destas mudanças, especialmente por ser uma mulher que viajava entre diferentes países, difundindo a cultura espanhola.
Para fechar este último bloco, temos o capítulo de Camila Nakamura Vieira, Ana Cristina César: da prática tradutória à circulação intelectual feminina. A autora escreve sobre a produção intelectual da poetisa Ana Cristina César, no sentido de visibilizar como ela é capaz de impulsionar a leitura de mulheres escritoras do século XX no eixo Brasil-Europa, território conhecido pela escritora carioca.
O caminho para promover a circulação dessa escritura feminina é o da tradução. Ana C. traduz os textos das autoras com as quais sente algum tipo de afinidade intelectual e ideológica. Para explicar este processo, Vieira percorre a teoria da tradução para compreender o papel que o tradutor possui na circulação de textos, conceitos e ideias nas mais diferentes realidades culturais. É exatamente este o papel que desempenha Ana C. como tradutora, como é possível observar em sua tradução da escritora neozelandesa Katherine Mansfield, com quem apresenta inclusive uma coincidência autobiográfica.
Neste sentido, é importante destacar que a circulação de mulheres pode ocorrer de maneira diversa, não dependendo apenas do deslocamento territorial, suas ideias, suas concepções teóricas ou causas sociais também perambulam pelo mundo social e intelectual. São narradoras desse mundo em escombros que precisa ser revisto, ressignificado.
O livro Mulheres transatlânticas também tem o mesmo intuito, que os textos, as autoras, os temas, as experiências e as teorias aqui propostos possam circundar o mundo em um movimento de superação, e de afetos, que possam trazer mudanças e alento para as mulheres em suas mais variadas identidades e para a humanidade.
No pós-pandemia, vamos precisar de um mundo novo, com novos olhares e certamente as mulheres, e o que representam, farão parte deste contexto. Afinal, como afirmou Sojourner Truth “então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima!” (Truth, apud Ribeiro, 2017: 13).
Por fim, queríamos agradecer às autoras pela grande contribuição dos seus trabalhos para esta obra tão diversa e interessante, bem como ao excelente trabalho de edição das editoras Autografia e UAM Ediciones. Lançamos um agradecimento especial ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e à CAPES, já que esta obra não seria possível sem o apoio e a ajuda econômica fornecida por esta instituição pública.
Agradecemos também ao Projeto I+D para Jóvenes Investigadores da Universidad Autónoma de Madrid (Referência: SI1/PJI/2019-00257), ao Projeto Identidades en movimiento. Flujos, circulación y transformaciones culturales en el espacio atlántico (siglos XIX y XX) (Referência: PID2019-106210GB-I00) e ao Coletivo Atinuké – Sobre o Pensamento de Mulheres Negras, por acreditarem na concretização desta publicação.
Desejamos uma excelente leitura!
Referências
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá – Colombia, Nº 9: 73-101, julio-diciembre 2008.
MACHADO, Vanda. Pele da cor da noite. Salvador: Edufba, 2017.
MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(3): 320, setembro-dezembro/2005.