Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza

Mulheres transatlânticas


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(reduzidas somente à maternidade biológica pelo patriarcado) é, para as mulheres negro-africanas, também a mesma força de gestar as organizações sociais, ancestrais, econômicas e políticas do povo a qual estas mulheres pertencem.

      Assim, juntamente com outras pensadoras negras (Oyewumi, 2016; Collins, 2019) o poder das mulheres africanas e afrodiaspóricas se materializa primeiramente por se localizar num tipo de saber promovido pela ancestralidade, organizado pela matriz africana e, portanto, organizado pela cosmossensação (Oyewumi, 2016) em lutas sociais e coletivas – pela justiça social (Collins, 2019) e pela democracia. Essas lutas são referências iniciadas pelos indivíduos escravizados e seus descendentes, de forma contracultural à modernidade, à política liberal que constrói “inocentes noções de justiça e democracia” (Gilroy, 2017), onde somente os iguais podem ter o pleno acesso e os diferentes habitam fora deste enredo. Portanto, a luta pela justiça social, pela democracia e liberdade também toma outras dimensões quando é dita pelas populações que se agenciam em causas próprias, incorporando assim dimensões de raça, classe, gênero e território.

      A cosmossensação descrita pela socióloga Oyeronke Oyewumi se contrapõe ao paradigma da racionalidade ocidental, em que a razão está na máxima: penso, logo existo, de Descartes. No conhecimento nigeriano descrito pela intelectual, a racionalidade africana é produzida nas relações cosmogônicas e sentimentais, portanto, sinto, logo me conecto com o cosmo e produzo racionalidade compartilhada.

      Dentro do esforço do giro decolonial (Quijano, 1997) que mobiliza tornar possível outras narrativas que se contrapõem ao esquema colonial ainda vigente – colonialidade – é que acredito ser possível localizar a fonte de saber das mulheres negras na diáspora, nas Américas e ao sul do Sul.

      Então, construir uma narrativa que se assegura em olhar para fenômenos sociais e políticos – as similaridades invariáveis –, sem dar ao dado histórico devida relevância e verificar quais são suas possibilidades de variações, considerando que a humanidade sempre apresenta saídas criativas e inovadoras que fogem ao controle do previsível social, estaria desrespeitando um grande e importante princípio, quando falamos em civilizações antigas, que é a ancestralidade negro-africana. A ancestralidade que fez a travessia nas águas do Oceano Atlântico e nas Américas se hospeda. Um exemplo disso é a louvação à Iemanjá no Brasil e em toda a costa Atlântica – o Atlântico Negro.

      A contaminação líquida do mar envolveu tanto mistura quanto movimento. Dirigindo a atenção repetidamente às experiências de cruzamento e a outras histórias translocais, a ideia do Atlântico Negro pode não só aprofundar nossa compreensão sobre o poder comercial e estatal e sua relação com o território e o espaço… (Gilroy, 2017:15)

      Como os conhecimentos da ancestralidade operam diante do contexto de ruptura violenta que sofreram as africanas e os africanos com suas retiradas em massa para as Américas é o que atualmente os intelectuais, principalmente os de origem negra, têm descrito, com narrativas e potências de observação e entendimento sobre como foi possível resistir frente aos séculos de exploração e expropriação continental:

      … devemos reconsiderar as possibilidades de escrever relatos não centrados na Europa sobre como as culturas dissidentes da modernidade do Atlântico negro têm desenvolvido e modificado este mundo fragmentado, contribuindo amplamente para a saúde do nosso planeta e para suas aspirações democráticas. (Gilroy, 2017:16)

      As possibilidades de existências afrodiaspóricas no momento atual se apresentam diversas, dinâmicas e resultantes das arbitrariedades de sobrevivência à escravização e na manutenção de existências nos territórios compartilhados – de forma mais próxima com os povos originários (ameríndios) e de forma desigual com o povo colonialista (branco europeu). Estas possibilidades se apresentam plurais por vários motivos: clima do local, grupos étnicos reunidos, situação a que foram expostos – trabalhos de ganho, agropecuária, domésticos –, e possibilidades de rebeliões e fugas.

      Assim, negras e negros nas Américas – diasporizados – levaram consigo suas existências. Pode parecer retórica esta afirmação, mas ela é importante quando estamos demarcando espaço acadêmico de construção de conhecimento, onde ‘negro’ sempre foi tema, objeto de pesquisa e sofreu uma sistemática invisibilização como sujeito de produção intelectual, epistemológica e filosófica.

      Estas possibilidades de existência, mesmo que superficialmente se apresentem de maneiras diversas, também apresentam similaridades que nos últimos tempos têm se apresentado às ciências sociais que, debruçadas nos estudos africanos e centradas na agência negra (Asante, 2003), se baseiam na filosofia e epistemologia africana intentando afirmar a confluência (Santos, 2015) ancestral ou ancestralidade negro-africana.

      Se, pelo conhecimento científico, pudermos eliminar todas as formas das frustrações (culturais e outras) que vitimam povos, a aproximação sincera do gênero humano para criar uma verdadeira humanidade será promovida. (Diop, 1974:545)

      Fortalecida neste espírito científico contra-colonial de Cheikh Anta Diop, este ensaio me motiva em promover a confluência ancestral, tanto verbalizada por Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, afirmando que a confluência rege os processos de mobilização dos povos, gerando grandes debates entre a realidade e a aparência.

      Lutas por justiça social

      Assim, foram se criando várias saídas de sobrevivência, com possibilidades de recriação do mundo africano, através de reminiscências ancestrais (Machado, 2019). Organizando-se inicialmente nos espaços de convivência social (senzalas) e depois nos outros espaços de aglutinação negra. Os terreiros se constituem nesta segunda opção, sendo uma forma dentro destas tantas possibilidades, assim como os quilombos também foram e que atualmente podemos reformular em aquilombamentos como nos permite pensar Beatriz Nascimento, que diz que o “quilombo não foi o reduto de negros fugidos: foi a sociedade alternativa que o negro criou” (Nascimento, 2018: 101).

      O que podemos constatar assim é que, em qualquer que seja esta situação, a complexidade negro-africana perpetuou e influenciou nas composições de comunidades negras em geral, invadiu outros espaços sociais de maioria negra, tais como as comunidades de moradias pobres e periféricas, se espargindo para a construção cultural e social das mesmas.

      Assim, a sabedoria ancestral de negras e negros compõe culturalmente as numerosas manifestações populares afrodiaspóricas e afroindígenas. Está impregnada no comportamento social, nas formas linguísticas, ritualísticas e culinária (principalmente no Brasil, de onde me localizo) e as invariáveis se apresentam como um complexo de saberes de ordem ontológica, epistêmica e ética. Por isso é fundamental afirmar a noção civilizatória e do conhecimento, da sua origem filosófica e teológica.

      Movimentos sociais e acadêmicos no processo de fortalecimento afrodiaspórico