pela negação da legitimação de outras formas de conhecimento e principalmente da negação dos membros sujeitos destes conhecimentos ignorados, portanto elaborado no paradigma da alteridade – negação do Outro –, em um empreendimento colonial e sua visão civilizatória, principalmente nas Américas, onde ocorre o epistemicídio e o genocídio.
O autor carrega nestas formulações conceituais o conhecimento no processo colonial que ficou arrolado somente aos detentores do poder e, portanto, para os povos colonizados seus conhecimentos primevos foram dizimados, mortos. Este contributo foi calcado a partir da tradição filosófica ocidental, e esta não suporta a complexidade da alteridade amefricana. E como diz Sueli Carneiro, é limitante para uma integração dos Outros, que são as mulheres e homens racializados, pois é “a construção do outro como não-ser como fundamento do ser” (Carneiro, 2005). Então, este conceito epistemicídio é ampliado como a autora descreve:
Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural7: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc. (Carneiro, 2018: 97)
A escrita da Sueli Carneiro apresenta a forma com que a luta das mulheres se coletiviza, quando a autora utiliza a terceira pessoa de plural no início de sua frase conceitual. E segue citando os diversos e amplos espaços de subjugação por onde o epistemicídio opera, traçando o que ela denomina de “indigência cultural”. Para além da morte intelectual, do conhecimento, somos atravessados pela invisibilidade histórica, o que cria uma não ação, um não lugar, uma não existência, um sequestro da razão quando nega a racionalidade deste Outro.
Esta crítica de Sueli Carneiro promove um pensamento importante para as construções acadêmicas, em que percebemos muitas das vezes uma brecha histórica sobre o sujeito e a sujeita negra. Quando não temos arcabouços teóricos para dimensionar a produção intelectual negra na diáspora. E eles existem, temos ainda o problema do acesso.
Por isso, é muito comum atualmente termos trabalhos acadêmicos que se referenciam à escravidão e pulam, dando um salto cronológico e histórico, para os dias atuais, como que se também no período pós-abolição não houvesse a agência negra em prol de suas vidas, desejos e conquistas. Como se a sociedade se tornasse “menos racista” ou “mais receptiva” à diversidade por ela mesma. Sem a contribuição fundamental do senso crítico social criado pelos movimentos negros, sejam eles de ordem social, cultural ou intelectual.
Nestas outras narrativas, as das sujeitas negras, dos sujeitos negros, poderemos encontrar um apanhado de informações que nos dizem sobre estas existências, de forma múltipla, individual, coletiva e organizada. Formas expressivas artísticas e culturais foram as que sempre escaparam para dentro das narrativas ditas como as expressões populares, “profanas” ou acessíveis ao público. Sempre colocadas em tom de brincadeira, deboche e com toques pornográficos, as expressões culturais por muito tempo foram vistas e descritas com uma peculiar desvalorização do fazer negro.
As mulheres de terreiro aparecem na brecha desta discussão, em seus terreiros, não se constituindo como espaço privados, mas como espaços públicos da população negra e indígena. Espaços de aglomeração da população empobrecida e carente das políticas públicas. E as comunidades se constituem para o atendimento das complexas demandas que estas existências sobrecarregam e assim sendo os espaços de resistência de conhecimento e de multiplicação das possibilidades de existência na diáspora.
O terreiro, este espaço que se visualiza físico, mas que se expande para a imaterialidade, não só contribui para uma manutenção de conhecimento, como também é capaz de gestar e gerar (Ribeiro, 2020) a ontologia do ser negro nas Américas. Ali a vida é reproduzida material e imaterialmente. A criação dos indivíduos e da comunidade se dá por e para ela mesma. Todos os elementos são corresponsáveis por cada vida, portanto, gestar e gerir vira um atributo coletivo do terreiro.
Os atributos vindos desta gestação são evidentes na estética, na culinária, vestimentas, artefatos, fazer musical, corporal e também estratégias de convívio social, onde se ressignificam símbolos e imagens, cores e sabores, polifonias e polirritmias, sem dualidades entre sagrado e profano ou entre o bem e o mal, mas sim fortalecendo a percepção cósmica – cosmopercepção – e coletiva das pessoas e das coisas.
As religiosidades de matrizes africanas, em suas lidas cotidianas, rituais e mistérios, engendram toda a sabedoria que foi transplantada e transportada pelo Atlântico. E neste oceano reside toda a força que em trânsito foi depositada através dos corpos-coisas que foram deixados, formando um grande cemitério negro ancestral.
As águas, para o Povo de Terreiro, o mar, cachoeiras, rios e lagoas, contêm um imenso significado vital, assim como deveria ser para todos os povos. As deusas, orixás, inkisses e voduns são aclamadas e cultuadas com muita intensidade, pois são elas que se assemelham e se representam nas águas. Assim, sabemos que no Atlântico reside um memorial de sabedoria que, materializado por Iyemanjá, a rainha do mar, a mãe de todas as cabeças, que concebe e permanece gerando mais e mais filhos – o Atlântico Negro.
Não podemos tentar mensurar quão complexas foram as saídas de resposta e de sobrevivência possíveis dos africanos e africanas, à medida que reconstroem e atualizam as práticas africanas. Sendo assim, em cada comunidade negra se produziu/produz uma tradição. Muito por conta das diferentes línguas, cultos, rituais e costumes vindos do continente africano. Podemos inclusive afirmar que clima, fauna e flora disponíveis, contribuíram também para a constituição da diversidade de organizações que se apresentam no Brasil e nas Américas, além de considerar os grupos étnicos africanos juntados e os grupos étnicos originários que tiveram que organizar convivências.
A importância dos povos originários para a organização negro-africana no Brasil se mostra fundamental. Aparece muito pela utilização de ervas e animais, que é basicamente experimentada e igualmente conhecida, mostrando que efetivamente a troca de conhecimentos se deu e ainda se dá de forma dinâmica, horizontal, circular e presente. Além do mais, como podemos verificar, as cosmopercepções de mundo africano e ameríndio são similares, fator que pode responder o porquê entre estes povos não aparecem, pelo menos em fatos historicizados, grandes conflitos, até porque o racismo latino-americano…
… é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. (González, 2018:326)
Portanto, a relação entre povos africanos e ameríndios traz, inclusive para dentro do pensamento feminista negro brasileiro, a produção de uma categoria analítica construída neste espírito pela intelectual Lélia Gonzalez: a Amefricanidade (González, 2018), que diz:
As implicações políticas e culturais da categoria Amefricanidade são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos