etc. (González, 2018:329-30)
Lélia Gonzalez colabora para que possamos reivindicar esta identidade negro-africana reconstituída na América ou Américas. Mas também não deixa de enfatizar que é uma reconstrução, e que diretamente isso quer dizer que histórica e culturalmente esta experiência não é igual àquela dos africanos em África, pois neste caso, mesmo sendo colonizados, estes permaneceram em seu próprio território-continente. Assim, podemos pensar que para os ameríndios, mesmo estando em situação de igual subalternidade, esta experiência se dá em seu território. Portanto, o fenômeno que se desencadeia na sobrevivência das culturas africanas (González, 2018) é um evento importante para os/as pesquisadores/as e militantes, pois pode proporcionar trocas intensas entre as/os interessadas/os nas Américas de Norte a Sul, sem o engano evolucionista e eurocêntrico, assim como o engano sobre estas sobrevivências sem considerar a potência criadora dos afrodiaspóricos.
Esta produção sem engano, sem fakes, é construída em cima do paradigma de que há um passado de resistência. Um passado de agência que é seguramente responsável pela nossa existência. Assim, entendemos a frase da pensadora Jurema Werneck, que diz que “nossos passos vêm de longe” (Werneck, 2010), pois esta frase carrega o compromisso da amplitude social e política digna da ancestralidade e das ialodês9 , e a autora faz…
… uma “aproximação dialógica com a tradição afro-brasileira utilizando a figura da Ialodê, como chave de análise de papéis, das funções e ações das mulheres nos processos da cultura popular. (Werneck, 2007: 59)
Considerando assim que nossos passos, passos do povo preto, vêm de África e dela percorrem todas as Américas. Neste caminho, as/os antepassadas/os, tiveram a necessidade de existir, resistir e vingar suas vidas, a partir de convivências forçadas pelo processo escravocrata, que forçosamente foram juntadas as pessoas de etnias e línguas diferentes em espaços diminutos, para ser mais um vetor de opressão (e foi), mas que o que aconteceu realmente foi a possibilidade de fundir e potencializar fragmentos de memórias que foram se reconstruindo estes saberes e que hoje é possível detectar e inclusive estudar no universo acadêmico. E Lélia Gonzalez novamente nos diz:
Por tudo isso, e muito mais, acredito que politicamente é muito mais democrático, culturalmente muito mais realista e logicamente muito mais coerente, identificar-nos a partir da categoria Amefricanidade e nos autodesignarmos amefricanos… Reconhecê-la é, em última instância, reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos. (González, 2018:333)
Assim, mulheres negras transatlânticas (Nascimento apud Ratts, 2006), amefricanas (González, 2018), afrodiaspóricas (Gilroy, 2007), constroem fortes versões de consciência histórica. Capazes de legar a esta coletividade política, filosófica, histórica e culturalmente um pleno e multicêntrico fluxo de conhecimento, em uma reconstrução de linhas cosmopolíticas.
Considerações finais
Fortalecida com as intelectuais negras, e considero aqui intelectuais não somente as mulheres que escrevem academicamente ou até militantemente (se é possível separar estas categorias), mas também as mulheres cotidianas, as mulheres práticas, as mulheres da vida (vida essa sendo vivida dentro das possibilidades para as mulheres negras), com elas, a cada dia, tenho percebido que se faz urgente uma união estratégica e política, pois filosófica e epistemologicamente temos condições de perceber que existe uma unicidade. Uma verdade contrapondo a mentira racista que diz que não somos unidos. O problema é que a vida de urgências, a comunicação imediata e fugaz e o imperialismo de consumo asfixiam e não deixam os indivíduos perceberem que existem frestas para alianças contra coloniais, que existem exemplos seculares desta forma de resistência e os terreiros e os quilombos também têm o poder de se expandir nesta fresta. Têm a força de contrafluir em prol da humanidade e vida desejada na diáspora.
Estes tempos presentes podem parecer mortais, como enfatiza Wanderson Flor do Nascimento (2020) e se apresentam como um modo de gestar as populações a partir da necropolítica. A discussão então gira em torno de qual humanidade reivindicamos, ou a partir de qual exemplo de humanidade podemos criar uma crítica à vivida até aqui perante as comunidades negras nas Américas?
Sabemos que o colonialismo, advento que trouxe a “modernidade” para o contexto histórico, político e cultural, hierarquizou existências pelas réguas do racismo, do sexismo e xenofobia. Não estamos falando de 1500, mas sim e também dos anos 2020, em que estas categorias ainda são regras de análise, julgamento e condenações para as pessoas pretas, não brancas, mulheres e jovens, pobres e marginalizados neste contexto de poder liberal.
Neste pandêmico ano de 2020, vivemos um contexto em que dirigentes das nações se armam com bélicos traços de ódio contra as expressividades afrorreligiosas na diáspora, pois, em contraposição, figura a imposição de um deus único, na figura de homem e branco, e que fortalece o jogo do poder, dando manutenção ao sistema e ajudando a justificar a escassez entre os muitos e a sobra entre poucos. Toda essa metalinguagem lançada aqui bipolariza o jogo de força de nós e eles, sendo eles – os inimigos da maioria racializada, feminina e pobre – cada vez mais fortes nesta guerra.
E com que armas lutamos?
A cada dia, quanto mais fortalecemos a ancestralidade, fortalecemos nossos valores conectados com a vida imaterial. Assim, podemos nos colocar de outra forma para lutar e persistir neste jogo tão desigual. Mais do que isso, estou convencida que nossos antepassados contavam com isso justamente quando se conscientizavam que suas vidas eram curtas e não tinham a importância relacionada com os seus valores sobre ela.
Sim, escrevo para afirmar que sempre resistimos e sempre tivemos consciência de nossa condição de subalternidade forçada. E que na intenção de vida, reagimos de várias formas possíveis às nossas condições. Muitos, muitas, viveram pouco, mas ajudaram no processo de não esquecimento do que é ser negro-africano para seus descendentes.
A morte violenta para a população negra, desde os tempos de travessias atlânticas foi banalizada. Esses crimes cotidianos não são de hoje, não começaram a acontecer após a morte de George Floyd10 (EUA, maio, 2020) e a banalização de nossas mortes é um efeito altamente nocivo do racismo histórico.
Mesmo assim, para o paradigma de vida do povo de terreiro, morrer não é um problema ou uma punição, como diz Tata Nkosi Nambá – Wanderson Flor do Nascimento:
Para os povos de terreiro, morrer não é um problema, nem é encarado como evento punitivo. Para entender isso, é importante saber que iku, o modo como a palavra morte é entendida em iorubá – língua de um dos povos que compõem os terreiros de candomblé –, é, antes de qualquer coisa, um orixá, isto é, uma divindade. Aquela divindade encarregada de desvencilhar o corpo das pessoas que habitam uma comunidade do restante daquilo que as faz serem pessoas, para que elas possam seguir na comunidade como ancestrais. Iku é, portanto, a morte e também a divindade que a nos toca, retira-nos parte daquilo que nos faz sermos pessoas vivas: nossa ligação com o corpo. (Nascimento, 2020:30)
O que o professor universitário e Tata de Nkisse11 está descrevendo faz parte das similaridades invariantes que tenho apontado e que somado às relações com todas as coisas de dentro de terreiro, que se organizam de forma horizontal, iku não rompe com o pertencimento à comunidade e muito menos destrói o que o corpo vivo construiu. Iku somente transforma a presença e pertença em mortos-viventes (Nascimento, 2020).
Por isso, mortes naturais, mortes de idosos, mortes pelo toque de iku são vistos como acontecimentos aos que conseguiram cumprir com o seu projeto mítico-social. Este que, como diz mitologicamente, foi desenhado no processo de nascimento de cada pessoa, neste momento de individualidade em que somos submetidos antes de começarmos a fazer parte de uma comunidade, nos tornandonos coletivos.
Por outro lado, as mortes dentro de um contexto necropolítico, em que são promovidas pela violência de estado e da escassez de políticas públicas, são mortes resultantes de uma vida sofrida e não de uma vida vivida como descrevi acima. Assim, estas mortes,