El país. 20 julho 2020. Disponível em: https://verne.elpais.com/verne/2020/07/23/mexico/1595481612_470684.html
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
1. A palavra apapachar, de origem náhuatl, significa “más que dar un abrazo o expresar afecto, tiene una definición poética extendida en el imaginario de los mexicanos” (Rodríguez, 2020). Apapachar, cujo significado é acariciar com a alma, parece ser imprescindível para expressar afetos em um momento tão singular de nossa história.
Identidades diaspóricas
Mulheres negras e de terreiro – uma experiência sociopolítica transatlântica
Janine “Nina Fola” Cunha
O artigo objetiva trazer para a discussão similaridades invariáveis presentes em mulheres negras diaspóricas no Sul da América do Sul (RS e SC – BR, UY e ARG) e que apresentam reminiscências ancestrais africanas não somente no que diz respeito às práticas religiosas, mas presentes na característica compreensão de mundo e de localização social pertinentes aos lugares de mulheres, negras e de tradições de matriz africana.
Abarcam-se, então, valores como estética, ancestralidade, corporeidade, oralidade, entre outros evidentemente reconhecidos em ações comunitárias, coletivas e políticas onde são essenciais na presença negra, articulados na esfera pública, nas relações sociais, nas práticas religiosas e no cotidiano, sejam eles dentro ou fora dos terreiros.
Minhas pesquisas recentes vêm fortalecendo a ideia de que este modo de ser e sentir-se negras na diáspora (Gilroy, 2017) e, principalmente ao Sul do Sul (Oliveira e Pereira, 2019), são epistemologias que organizam e mantêm vidas negras frente à constante violência que sofre a população negra diante da necropolítica (Mbembe, 2018) e do epistemicídio (Carneiro, 2003). Pauta-se então como podem se organizar as subjetividades afro-diaspóricas num contexto globalizado e hierarquizado.
Este é um ensaio que tenta descrever, a partir de uma experiência, pesquisa e escrita vivida sobre esse assunto e que mobiliza outras referências de pesquisa e escrita, constituindo uma escrevivência (Oliveira, 2009) que eleva o encontro com a experiência e se apresenta como uma metodologia de escrita e da narrativa, colocando em jogo as compreensões compartilhadas no exercício da vivência no terreiro, da vivência militante social negra e de acadêmica as quais pude estar nos últimos 25 anos.
Também e com a mesma importância, esta escrevivência parte da potência paradigmática da afrocentricidade (Asante, 2003) – que coloca a experiência e agência negra/o ao centro.
Contextualização
Os terreiros são espaços que conservam uma gama de conhecimento, um manancial epistêmico que, sem dúvidas, é o principal mantenedor civilizatório do povo negro na Diáspora Africana. Esses conhecimentos são materializados na presença das pessoas e das coisas que são cultuadas e preservadas imemorialmente. Todo o ethos cultural negro (Sodré, 1988), mesmo que em dimensões micro ou fragmentadas, se apresenta nos terreiros e nas práticas religiosas.
O que pode ser afirmado é que, por conta do racismo histórico na diáspora houve um recrudescimento destes conhecimentos, isolando-os e fragmentando-os. Mas, em contrapartida, com a globalização do conhecimento sobre África, línguas, filosofia e demais ciências, principalmente a tecnologia, promove-se um acelerado desenvolvimento de paralelos possíveis para o desenvolvimento das áreas afins de humanidades, principalmente porque este fenômeno vem sendo chamado de “reafricanização”. Este, por sua vez, mobiliza novas formas de reinventar as “tradições” constituídas no Brasil e no Sul da América do Sul – ao Sul do Sul, como nos localizam Fernanda Oliveira e Priscila Pereira,
Ao mencionar o espectro da movimentação de mulheres negras, referimos a historicidade inerente ao processo, pois importa compreender como um olhar mais atento auxilia na compreensão de interpelações localizadas ao sul dentro de uma perspectiva histórica […] apresenta aspectos acerca do lugar de produção de parcela do pensamento em questão, dando corpo às epistemologias outras […] e que acompanharão outras reflexões desde o sul. Lugar este que refere um espaço geográfico e social e sintetiza características fundamentais do pensamento de mulheres negras ao sul do Sul, a saber uma produção de um espaço que invisibiliza a história e a presença da população negra. (Oliveira e Pereira, 2019:454-5)
Esta narrativa prioriza a presença das mulheres neste contexto, que sempre se caracteriza violenta desde a colônia até os dias atuais, na colonialidade (Quijano, 1997). E afirmo que, mesmo com a força colonial patriarcal, a presença e força das mulheres negras resiste e por vezes prevalece, se sobressaltando nestes ambientes. Não simplesmente pelo fator numérico de presença feminina nos espaços negros, não somente pela permanência e liderança das mulheres em coletivos negros e familiares, mas pelo fator da matripotência (Ribeiro, 2020), que a seguir descreverei.
O pressuposto primeiro é da força matrigestora presente na cosmogonia negro-africana. A filosofia africana e seus teóricos, principalmente as teóricas afro-brasileiras as quais me filio, trazem o debate do poder feminino na permanência negra nas Américas e no processo colonial em África. Conforme afirma Katiúscia Ribeiro, mulher negra, gaúcha, de terreiro e filósofa que:
O poder do feminino nas tradições africanas é milenar – e essas relações de pertencimento estão envoltas por valores ancestrais e sociais, pois os poderes de gestação não são somente para gestar vida, mas estão também nas forças dinâmicas e propulsoras que movem as relações de todo um processo do comum2 que organiza e propõe perspectivas de interrelações grupais. (Ribeiro, 2020:38)
Se o poder feminino é milenarmente reconhecido nas tradições africanas, o que podemos desvendar com esta afirmação? Inicialmente, dá indícios de como que se refaz nas comunidades negras, sejam elas religiosas ou não, a garantia de um protagonismo das mulheres, que nem sempre são as geradoras daquela vida em especial, mas promotoras das continuidades viventes em si. Seguindo no que a filósofa continua afirmando, estes valores se envolvem em valores ancestrais e sociais e que estes saberes/fazeres das mulheres, muitas vezes entendidos como domésticos e hierarquicamente reduzidos pelos padrões patriarcais, são efetivamente poderes de geração de vida.
Assim, o que se entende é que fica assegurada através das mulheres a manutenção destes valores e certificada a presença continuada, dado que as mulheres, principalmente no sistema patriarcal, é dada a função de cuidadora. Esta função cuidadora também é subvalorizada pelo ocidente, mas fundamentalmente importante nos terreiros. Inclusive sendo nos terreiros de candomblé instituído um cargo para as mães criadeiras, mas que em todas as outras funções na hierarquia circular (Bueno, apud Cunha, 2020) o cuidado é presente, inclusive nos cargos ditos masculinos.
O cuidar no terreiro talvez seja um dos mais sérios, importantes e primordiais ensinamentos/conhecimentos que circulam na pedagogia do terreiro (Santos, 2019), onde a/o aprendiz deve abrir sua sensibilidade, se desfazer dos costumes cotidianos e entender que é base filosofal de todos os fazeres. Por isso, é importante enfatizar que, num contexto afro-diaspórico, num contexto em que atingidas/os por um projeto de violência secular como foi a escravidão e, depois num projeto genocida que se perpetua na colonialidade das Américas, jogada à marginalização, a população negra, incrivelmente, permanece viva. Como nos diz Paul Gilroy sobre o que a ideia de diáspora:
… possa nos ajudar a acabar com a tal marginalização. No espírito do que pode ser chamado de história “heterológica”, gostaria que considerássemos o caráter cultural e as dimensões políticas de uma narrativa emergente sobre a diáspora que possa relacionar, senão combinar e unificar, as experiências modernas das comunidades e interesses negros em várias partes do mundo. (Gilroy, 2017:11)
Paul Gilroy nos apresenta uma proposta de construção de outra narrativa, com uma ideia próxima da lógica da vida e que nos traz a importância, a responsabilidade e a garantia que as mulheres