em vincular o direito internacional aos outros níveis regulatórios que compõem o ordenamento jurídico nacional. Para citar um caso ocorrido em âmbito estadual —porque manifestações de ataque democrático não têm ocorrido apenas a nível federal —, o governador de São Paulo ordenou recolhimento de apostilas didáticas usadas nas escolas estaduais por conter “apologia à ideologia de gênero”. O material trazia explicações sobre a diferença entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual.53
Para a devolução das apostilas, um coletivo de advogados, em nome de um grupo de professores da rede pública paulista, apresentou ação coletiva. A petição trazia as previsões da Constituição brasileira de efetivação ao direito à educação, garantido o pluralismo de ideias, foram apresentadas com reforço das previsões internacionais da Declaração Universal de Direitos Humanos, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.54
Um outro exemplo nessa mesma esfera se liga à história brasileira — compartilhada com outros países latino-americanos— de anistia por crimes cometidos durante a ditadura militar. Como é amplamente divulgado pela mídia brasileira e internacional, o presidente da república e alguns de seus apoiadores elogiam a ditadura militar brasileira e militares envolvidos em casos comprovados de tortura e desaparecimento forçado.55 Nessa linha, o presidente chegou a se manifestar oficialmente dando aval ao corpo das forças armadas para comemoração do golpe militar de 1964.56 É clara, nesse caso, a importância de se mobilizar os termos da condenação do Brasil pela Corte Interamericana, com reforço das medidas de não repetição.57 Esse ponto foi inclusive central para a ação ajuizada pela Defensoria Pública para impedir que verbas públicas fossem alocadas para manifestações desse tipo.58
Desde sua campanha eleitoral, o atual presidente brasileiro mencionava como um dos pontos centrais de sua agenda de governo o estabelecimento do excludente de ilicitude de atos por parte dos “agentes da lei” como medida de aumento de segurança no país.59 Recentemente o presidente brasileiro enviou ao Congresso projeto de lei que regulamenta o excludente de ilicitude para agentes civis e militares em meio a operações de garantia da lei e da ordem — o momento da proposta coincide com protestos em outros países da América Latina que poderiam “chegar” ao Brasil.60
Em um dos primeiros posicionamentos institucionais contra o projeto, o Ministério Público Federal demonstrou a incompatibilidade do projeto de lei para excludente de ilicitude.61 Em sua nota técnica, reforçou a previsão constitucional da capacitação das polícias para causar o menor dano possível e a proteção das liberdades de manifestação, expressão, reunião. Também trouxe o direito internacional para demonstrar a proibição de execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias.62
É menos usual pensar no jurista internacionalista como um profissional que atua no âmbito interno aos estados. Quando Anthea Roberts comenta sobre internacionalistas com experiência de advocacia local, por exemplo, a autora menciona que essa prática geralmente envolve “apresentar argumentos dentro do sistema jurídico nacional”.63 Certamente essa imagem descreve bem a maior parte dos casos defendidos nas cortes brasileiras, que normalmente se baseiam no próprio direito brasileiro. Contudo, ao se pensar o binômio do uso do direito nacional no âmbito interno e do direito internacional no âmbito internacional, perde-se de vista um aspecto importante de poder argumentativo do direito internacional, que é sua internalização e implementação no âmbito local; um aspecto especialmente relevante num quadro de retorno do nacionalismo e populismo, além do enfraquecimento do poder de persuasão das instituições internacionais.
Sem entrar no mérito das discussões atuais sobre como o próprio internacionalismo liberal contribuiu para a criação das condições que levam à esse quadro de retorno do nacionalismo e populismo na contemporaneidade,64 o que se busca argumentar aqui é que uma visão estanque entre os espaços de prática nacional e internacional não permite enxergar experiências que unem o internacional e o nacional na dimensão local. O contexto brasileiro atual explorado anteriormente apresenta casos em que o direito internacional pode ser articulado de forma criativa e estratégica juntamente ao direito brasileiro para garantir a proteção aos direitos humanos e a conservação do espaço democrático no país. Pensar a prática do direito internacional como ligada somente às cortes e tribunais internacionais, mecanismos quasi-jurisdicionais de resolução de controvérsias e grandes firmas internacionais de advocacia invizibiliza a possibilidade de analisar as diversas maneiras pelas quais o local se acopla ao internacional em processos complexos de transformação, ordenação e governança.65
Como afirmado anteriormente, a despeito das limitações relacionadas à análise isolada de programas de ensino, os objetivos e conteúdos dos programas discutidos nesta contribuição parecem apontar para uma noção bastante tradicional de direito internacional como o conjunto de regras que regulamenta as relações entre Estados soberanos. Com algumas exceções, os programas de ensino analisados parecem reproduzir a ideia de prática do direito internacional como os espaços tradicionais de resolução de controvérsias internacionais, tal como afirmado por Roberts. Em outras palavras, uma reprodução do binômio do uso do direito nacional no âmbito interno e do direito internacional no âmbito internacional, sem uma exploração mais robusta das possibilidades de internalização do direito internacional na dimensão local.
Considerações finais
Este artigo teve como objetivo analisar como se estabelece a relação entre o ensino do direito internacional e sua prática no contexto brasileiro atual. Por meio da análise dos programas de ensino das mais bem avaliadas faculdades de direito localizadas na cidade de São Paulo, foi discutido em que medida os objetivos pedagógicos e os conteúdos declarados nos programas de ensino analisados possibilitam aos discentes uma compreensão ampla e variada dos usos possíveis do direito internacional na dimensão local brasileira. Conclui-se que, em linhas gerais, os programas de ensino apontam para a escolha de uma formação do jurista internacionalista que privilegia abordagem focada nos tradicionais espaços de resolução de controvérsias internacionais, em detrimento dos diversos usos práticos do direito internacional na dimensão local.
Referências
Abdalla, Anita. O plano de Bolsonaro sobre ‘excludentes de ilicitude’, Nexo, 1 out. 2018. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/10/01/O-plano-de-Bolsonaro-sobre-%E2%80%98excludentes-de-ilicitude%E2%80%99, acesso em 30 nov. 2019.
Bergamo, Monica. Bolsonaro é denunciado ao Tribunal penal Internacional por crimes ‘contra a humanidade’, Folha de São Paulo, 28 nov. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2019/11/bolsonaro-e-denunciado-ao-tribunal-penal-internacional-por-crimes-contra-a-humanidade.shtml, acesso em 30 nov. 2019.
Bogliolo, Luís. Law, Neoliberal Authoritarianism and the Brazilian Crisis, TWAILR – Third World Approaches to International Law Review, 30 ago. 2019. Disponível em: https://twailr.com/law-neoliberal-authoritarianism-and-the-brazilian-crisis/, acesso em 30 nov. 2019.
Brasil. Ministério da Educação, Portaria n. 1886, de 30 de dezembro de 1994. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20100108-03.pdf, acesso em 18 nov. 2019
Brasil. Ministério da Educação, Resolução CNE/CES n. 9, de 29 de setembro de 2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rces09_04.pdf,