todo meu bem.
Vejo-a n'alma pintada,
Quando me pede o desejo
O natural que não vejo.
Se só de ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tão excellente
Mal poderei ser ausente,
Em quanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tão bem debuxada,
E a memoria tanto voa,
Que se a não vejo em pessoa,
Vejo-a n'alma pintada.
O desejo, que s'estende
Ao que menos se concede,
Sôbre vós pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, qu'em ausencia vos vejo,
Tenho piedade e pejo
De me ver tão pobre estar,
Qu'então não tenho que dar,
Quando me pede o desejo.
Como áquelle que cegou,
He cousa vista e notoria,
Que a natureza ordenou
Que se lhe dobre em memoria
O qu'em vista lhe faltou:
Assi a mi, que não vejo
Co'os olhos o que desejo,
Na memoria e na firmeza
Me concede a natureza
O natural que não vejo.
Sem vós, e com meu cuidado,
Olhae com quem, e sem quem.
Vendo Amor que com vos ver
Mais levemente soffria
Os males que me fazia,
Não me pôde isto soffrer;
Conjurou-se com meu Fado;
Hum novo mal me ordenou:
Ambos me levão forçado,
Não sei onde, pois que vou
Sem vós e com meu cuidado.
Não sei qual he mais estranho
Destes dous males que sigo,
Se não vos ver, se comigo
Levar imigo tamanho.
O que fica, e o que vem,
Hum me mata, outro desejo:
Com tal mal, e sem tal bem,
Em taes extremos me vejo:
Olhae com quem, e sem quem!
Amor, cuja providencia
Foi sempre que não errasse,
Porque n'alma vos levasse,
Respeitando o mal d'ausencia,
Quiz qu'em vós me transformasse.
E vendo-me ir maltratado,
Eu e meu cuidado sós,
Proveo nisso de attentado,
Por não me ausentar de vós,
Sem vós, e com meu cuidado.
Mas est'alma, qu'eu trazia,
Porque vós nella morais,
Deixa-me cego, e sem guia;
Que ha por melhor companhia
Ficar onde vós ficais.
Assi me vou de meu bem,
Onde quer a forte estrella,
Sem alma, qu'em si vos tem,
Co'o mal de viver sem ella:
Olhae com quem, e sem quem!
Sem ventura he por demais.
Todo o trabalhado bem
Promette gostoso fruito;
Mas os trabalhos, que vem,
Para quem dita não tem
Valem pouco, e custão muito.
Rompe toda a pedra dura,
Faz os homens immortais
O trabalho quando atura;
Mas querer achar ventura,
Sem ventura, he por demais.
Minh'alma, lembrae-vos della.
Pois o ver-vos tenho em mais
Que mil vidas que me deis,
Assi como a que me dais,
Meu bem, ja que mo negais,
Meus olhos, não mo negueis.
E se a tal estado vim
Guiado de minha estrella,
Quando houverdes dó de mim,
Minha vida, dae-lhe a fim,
Minh'alma, lembrae-vos della.
Tudo póde huma affeição.
Tẽe tal jurdição Amor
N'alma donde se aposenta,
E de que se faz senhor,
Que a liberta e isenta
De todo humano temor.
E com mui justa razão,
Como senhor soberano,
Que Amor não consente dano.
E pois me soffre tenção,
Gritarei por desengano:
Tudo póde huma affeição.
Justa fué mi perdicion;
De mis males soy contento;
Ya no espero galardon,
Pues vuestro merecimiento
Satisfizo mi pasion.
Despues que Amor me formó
Todo de amor, cual me veo,
En las leyes, que me dió,
El mirar me consintió,
Y defendióme el deseo.
Mas el alma, como injusta,
En viendo tal perfeccion,
Dió al deseo ocasion:
Y pues quebré ley tan justa,
Justa fué mi perdicion.
Mostrándoseme el Amor
Mas benigno que cruel,
Sobre tirano traidor,
De zelos de mi dolor,
Quiso tomar parte en él.
Yo que tan dulce tormento
No